sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

O SILÊNCIO DA CORDILHEIRA

Uma das belas coisas de Santiago de Chile e a onipresença da Cordilheira dos Andes.
Já vim aqui muitas vezes e, inclusive no final dos anos 70 do século passado vivi na cidade por um ano e sempre me atraiu a majestade das montanhas cuja rude beleza ilumina a memória que tenho deste lugar.
Porém ontem, pela primeira vez notei o poderoso silêncio que emana da cordilheira, tão forte que sobrepuja o bulício da cidade.

Caminhava na rua atento aos sons do lugar, aos cantares distintos dos diversos pássaros, os diferentes ruídos dos muito diversificados veículos, pessoas conversando, alarmes, sirenes de histéricas ambulâncias, passos humanos... Talvez porque imerso na observação sonora, quando meus olhos mais uma vez tocaram as alturas das montanhas percebi seu silêncio. E, desde então não me canso de escutá-lo.

E sei que só agora percebo tal silêncio e em tal intensidade apenas porque finalmente tornei-me capaz dessa ausculta. Não porque só agora acontece – aí esteve o imperioso vazio todo este tempo à espera da competência auditiva.

Hoje na feira de rua, na calle Arrieta a polifonia cacofônica das feiras de todos os lugares estava condignamente reproduzida. Cada vendedor alertava os fregueses da beleza de suas frutillas, moras, arandanos, plátanos, paltas, cebollas (enormes), sapallos (gigantescas a tal ponto que são cortadas com serrotes – são as abóboras) etc. Alguns gritavam esganiçadamente, com um tom de voz choroso que semelha cantos flamencos em vitrola antiga mais lenta que o normal, outros mais discretos, porém repetindo o mesmo mote centenas de vezes na esperança – penso – de que o público compre apenas para que parem a lancantina, outros com voz rouca anunciando a novidade de todas as feiras, de todos os dias e estações como se realmente fossem novidades...

Mas acima de tudo, pairando como um condor arquetípico, o silêncio dos picos inatingíveis sustentando vozes, cantos, choros, vida, latidos, enfim, as batidas do coração desta singular cidade.

Recebam um abraço santiaguino de Aureo Augusto 

sábado, 13 de fevereiro de 2016

VIDA!

Hoje, 12/2/16, na reunião de equipe, entre outras coisas, conversamos, não sei como nem porquê esse assunto entrou, sobre a morte. Alguns diziam que tem gente que simplesmente desliga, mas Ni, que é agente comunitária de saúde, afirmou que nunca viu ninguém morrer numa boa, sempre tem sofrimento, careta, como ela disse.

A morte é uma ocorrência frequente nos serviços de saúde, e, nos lugares pequenos como o Vale do Capão, temos uma proximidade, uma intimidade uns com os outros que torna a morte um algo que toca em todos. O nosso povoado está crescendo e há sinais de diluição dessa intimidade, porém, mesmo assim ainda nos sentimos pertinentes à “família” que somos.
E sempre que o assunto bordeja o fim da vida, me lembro de Montaigne, que nos seus Ensaios trata do assunto algumas vezes. Ele nos diz que a vida em muito é uma preparação para a morte e que aqueles que viveram bem, morrem bem. E não é que tenho notado isso aqui na restrita vizinhança que tenho!

As pessoas que viveram com algum grau de plenitude e autonomia tendem a morrer com tranquilidade. Como se já tivessem cumprido o que tinham que viver e fazer, como tal, sentem-se propensos ao descanso razoável.
Mais ainda: Noto que tem mais medo de morrer quem menos gosta de viver, ou, dito melhor, quem menos degusta o viver. Sei que a vida tem momentos difíceis. Sei também que a vida de quem vive em lugares conflituosos há de ser atroz. Ou de quem passa fome.

Sim, a morte há que depender da vida...
Então o texto encalhou na máquina enquanto a noite chegou e hoje, 13 de fevereiro, sento-me no parapeito da janela enquanto espero um cliente para atender. A quantidade de pássaros é absurda. Parece um congresso de aves! Corrupiões fazendo ninho na minha varanda, sábias sabiás, bem-te-vis (nada vis, deliciosamente belos), garrinchas de canelas secas, aranquãs, bandeirinhas, sofrês, andorinhas (até andorinhas e acho que não é época) e uma turma que não conheço... tantos pássaros em tão grande número e animação, gritando Vida com tonalidades múltiplas.

Confesso que não sei bem o significado disso tudo, se é que há. Há, no entanto, um sentimento sentido de que há uma pertinência que me traduz em mim mesmo o que o mundo me traz.

Recebam um beijo no coração de Aureo Augusto.