quinta-feira, 23 de maio de 2013

RÁPIDAS NOTÍCIAS DO VALE DO CAPÃO


No transporte, nas conversas, na beira da fogueira num velório, na feira, ou escutando a conversa dos outros, descubro coisas interessantes deste lugar que tanto amo. Aqui um a seleção de curtas notícias daqui:

1. Enquanto íamos para Palmeiras, D. Lourdes e D. Marilza conversavam das coisas de antigamente. Lembraram que D. Mariquinha fazia uns tijolinhos de licurí com rapadura que até hoje ninguém faz igual. Para elas aquele petisco jamais será igualado, o que é verdade, pois o sabor não é apenas aquele da coisa, mas também do contexto.
Aliás, apesar de ser um lugar tremendamente remoto, o Vale do Capão não escapava de modismos que aconteciam em outros lugares: Lourdes também se lembra de que aqui no Capão houve uma época da língua do “p”.

2. Seu Manoel Messias da Conceição dos Gatos é conhecido por Hélio que seria o nome escolhido por seus pais para batiza-lo. Ocorre que inda muito pequeno teve varíola e quase morre. O padre veio batiza-lo encontrando-o enrolado nas folhas de bananeira, e disse que não poderia chamar-se Hélio e mudou para Manoel Messias com aquela autoridade que os padres tinham antigamente. Assim é nos documentos, mas ficou com dois nomes, um do padre e dos documentos e outro, mais usado, o do povo e dos pais.
O interessante que este negócio de nome no Capão tem suas coisas interessantes. Conheço duas Sebastianas que não usam o nome: Uma é Neuzinha (que de inha não tem nada), a outra é Célia. Foram batizadas com nomes que homenageavam o padroeiro do lugar, porém nunca usam. Outros dois apodados Sebastião, só são conhecidos por “Tio”. Já com Celina, foi nas consultas que descobri que seu nome é outro na certidão, mas gosta de Celina e assim ficou até mesmo para os pais, cuja escolha havia sido outra.

3. D. Sebastiana manteve-se fiel ao nome. É muito idosa, muito mesmo e, é surda como uma porta, fazer consulta com ela não é fácil, porque tenho que gritar para que me escute, mas é um doce de pessoa e por isso, mesmo ficando rouco gosto de vê-la – embora meu sonho seja vê-la com aparelho auditivo. Vivia só e sua pressão e glicemia estavam no lugar com o uso adequado de medicações e dieta. Porém, depois que a irmã chegou para viver com ela, a pressão desregulou. A irmã diz que não comer sal dá anemia. Um claro exemplo de como as superstições podem interferir negativamente na saúde.

4. O Sr. Manoel Messias do Riacho do Ouro me disse que antigamente o povo usava folha de embaúba para lavar pratos, pois sai uma espuminha. Também usavam angico da beira do rio com o mesmo resultado. Ele é uma figura! Quando comecei no posto ele brigava porque sua pressão nunca ficava legal apesar de usar os remédios. Com o tempo conquistei-o e mudou a alimentação. Hoje se alegra com a pressão normal. Outro dia me disse sobre isso: “Mas também, tô cumeno igual ao doutor”.

5. Duas jovens senhoras aqui do Vale encontraram uma bela forma de salvar seus casamentos. Não vou poder dizer os nomes delas para evitar problemas. A primeira se separou do marido porque ele estava bebendo muito, mal influenciado por um tio e um sobrinho que gostam da farra. O tio inclusive brigou com ela porque dizia que ela queria mandar nele. Ela se separou dele por uma semana e depois voltou a pedido do cônjuge. Disse que foi bom porque “ele agora está igual à manteiga” de tão dócil. A outra também fez o mesmo, ela disse que também se separou quando o marido “tirou onda”; não sei exatamente o que significa este “tirou onda”, mas acredito que ele estava querendo mandar demais nela. O fato é que depois que se viu só ele pediu para ela voltar e se comportou bem legal desde então. Não estou preconizando o método, mas penso que o resultado, pelo menos nesses casos, foi um sucesso.

6. D. Eleni, irmã de Deli – um sujeito bem especial aqui do Capão –, me disse que acha que homem bonito só serve pra enfeite. Quando jovem marcou um encontro e já estava “arrumada”, que acredito seja algo assim como bem perto de casar, mas não seguiu adiante porque o cara era muito bonito. Doutra feita, separada do marido, um mulato lindo quis sair com ela, mas não aceitou porque era bonito demais. A conversa começou porque ela disse que Tuza, seu sobrinho, era bonito. Ela também disse que foi embora do Capão (para São Paulo) porque desde criança tinha fobia de gafanhoto. Abandonou este lugar aos 16 anos. Realmente morria de medo. Ontem viu um e começou a chorar desesperadamente. Marejou os olhos apenas ao falar do caso.

6. Em dezembro de 2009, Hiandra, uma jovem mãe de dois filhos, disse uma frase que gostei tanto que guardei: “A gente é sempre alguém atrás”.

7. E D. Alair disse: “Quem não quer ser velho morra de mal de 7 dias”.

8. Já Landinha é danada; digna filha de Seu Anísio e D. Argentina, pessoas bem especiais. Embora seja mãe de muitos filhos, sua cara e seu sorriso denunciam uma pessoa pronta a fazer traquinagens. Ela é trabalhadora como poucos. Não corre do serviço, mas é impressionante como gosta de rir e brincar. Contou-me que quando era criança sua mãe às vezes falava das coisas que tinha feito de malinagem na infância.  Contou que o pai ia bater nela por algo que havia feito e para se defender fingiu um desmaio. Foi um Deus nos Acuda e a mãe dela não deixou mais o pai bater, botou algodão com álcool pra ela respirar e ela fingiu que acordou aos poucos. Aí um dia D. Argentina foi bater nela e ela caiu no chão com tanto vigor que chegou a doer o osso da bunda, mas a mãe percebeu a treita e deu-lhe uma boa surra. Ou seja, imitar não vale, tem que ter criatividade até pra não levar surra.

O Vale do Capão, como qualquer outro lugar do mundo, tem seus pequenos segredos e o povo daqui é tão pitoresco quanto a bela paisagem. Às vezes penso que é uma pena que os turistas (ecoturistas, turistas de aventuras etc.) que aqui aportam não notam a riqueza humana aqui presente e perdem de conhecer um tesouro do mais alto valor.

Recebam um abraço humano de Aureo Augusto.

domingo, 19 de maio de 2013

HISTÓRIA DE VIDA


Em 2004 escrevi esta poesia como parte de uma exposição de pinturas que fiz na cidade de Seabra. Relendo-a me deu vontade de partilhar com vocês.

HISTÓRIA DE VIDA
O tempo imprime sua marca,
Vinca rostos, fere pedra e madeira
Rompe a singular estrutura
Estraçalha e refaz significados
Que marcam cada individualidade;
Ferro, casa, cidade, cadeira
Braços, árvore, serra, saudade
Cada coisa sofre o efeito da idade
E é nisso que se fez a história
Que define o que somos e à coisa
aquilo que ela é e somos nós
nesta vitória inglória
do existir sobre o não ser!

História de vida: a marca inalienável
O vinco, o sinal, o registro indelével
Do tempo que passou inelutável.

Só viveu quem sofreu a infalível
Dor que sempre nos visita, o inefável
Prazer do qual somos fruto improrrogável,
As marcas deste intemperismo inacabável
Que é experimentar o acontecer inadiável
Que ocorre entre o nascer sempre inábil
e o adeus impreterível.

Abraço poético para todos de Aureo Augusto.

segunda-feira, 13 de maio de 2013

TERNURA DE CRIANÇA


As crianças são uma coisa deliciosa! Quero só contar uma coisa:
Ontem estava assistindo a uma maravilhosa apresentação de música em Lothlorien, aqui no Vale do Capão, o maestro Stéfano conduzia um grupo realmente impressionante. Fiquei extasiado com o que escutava.

Mas, apesar de ser domingo, as pessoas continuam adoecendo ou se acidentando. Em dado momento, meu filho me procurou para dizer que uma criança se havia acidentado e me esperavam no posto. Fui correndo e tive a tristeza de ver os pais e amigos consternados com uma criança de apenas 3 anos chorando por causa de um corte na testa de mais de 4 cm. Marilza, como sempre, presta, já havia limpado a ferida e cortava os cabelos do infante para que eu pudesse atuar tranquilamente. Anestesiei e comecei a sutura. Embora não sentisse a dor, a situação era suficiente assustadora para que o menino gritasse muito. O pai segurava a cabeça para facilitar o meu trabalho, com firmeza e carinho enquanto a mãe, muito doce, lhe continha o corpo. Não foi fácil conte-lo, mas o trabalho pôde ser feito a contento.
No meio do processo a mãe, tentando em vão tranquilizar a criança, pediu que ela respirasse e tentasse relaxar. No momento em que eu dava um nós no fio ela parou de chorar e disse pra mãe: “Eu não estou conseguindo relaxar”. Olhei para Marilza e ambos ficamos com os corações completamente tomados pela emoção. Naquela comoção com a dor da criança, foi um momento de ternura infinita.

Recebam um abraço terno de Aureo Augusto.

sexta-feira, 3 de maio de 2013

A MEDICAÇÃO DE SEU DIVA

Uma das atividades de uma Unidade de Saúde da Família é a visita domiciliar. Por isso as sextas saio do posto e vou à residência daqueles que não têm condições de vir aqui para consultas médicas ou de enfermagem.

Hoje, entre outras pessoas, fui visitar um casal sumamente simpático, Seu Diva e Dona Ana. Ele é conhecido porque produz artesanalmente passarinhos feitos com retalhos que são um sucesso. Mas, além disso, é um homem muito especial, sábio e feliz. É um privilégio encontrar este casal; o humor contagiante, as tiradas espirituosas de Seu Diva, a sabedoria de suas palavras são impagáveis. Amo o dia em que “sou obrigado” a visita-los. Hoje a coisa foi muito interessante:
Ele se queixou que estava um pouco mole e até mesmo trêmulo. Ao verificar a pressão estava alta. Ele é correto no uso da medicação e ademais, sua alimentação é satisfatória. Começamos a conversar sobre as possíveis causas daquele súbito aumento da pressão. Ele dizia que talvez nos últimos dias tenha comido mais gordura do que o habitual. D. Ana pensou que talvez tenha sido o bolo que tinha comido e por aí vai. Então pedi para ver suas medicações. Trouxe-me de pronto. Então percebi que estava usando um hipoglicemiante ao invés de um anti-hipertensivo. Explico em miúdos: Ele tem que usar uma medicação para baixar a pressão, só que pediu a uma vizinha para comprar a medicação em Palmeiras (sede do município). Lá deram uma medicação que reduz os níveis da glicose (açúcar) no sangue. Assim, a moleza dele tinha a ver com o uso errado da medicação. E ele já havia tomado quase toda uma cartela (quase um mês).

Então tudo estava esclarecido. Ufa! Tudo resolvido D. Ana, olhou para os quatro comprimidos restantes e disse: “Ora, já que só falta estes podia terminar logo”. Eu e Seu Diva caímos na gargalhada. Mas confesso que não sei se ela estava apenas brincando. Havia algo desse povo de antigamente que não podia (devido às condições de vida naquela época) desperdiçar nada.

Convém pensar sobre isso.

Recebam um abraço bem humorado – como Seu Diva e Dona Ana – de Aureo Augusto.