sexta-feira, 29 de março de 2013

SIMPLES, RÁPIDO E ERRADO

Teve alguém muito inteligente que disse que há sempre uma forma simples e errada de resolver uma situação complexa. Nada mais certo. Por outro lado, há sempre uma forma de complexificar qualquer situação simples.

            Uma coisa que aprendi na Faculdade de Medicina foi que devemos partir do simples para o complexo, do mais provável e corriqueiro para o mais raro e incomum. O saudoso Dr. Zilton Andrade, em palestra para os estudantes no auditório do Hospital Professor Edgard Santos, nos contava que havia um paciente internado naquele mesmo hospital e os estudantes no afã de entender-lhe a patologia solicitaram cerca de trinta exames, alguns deles caros e, no entanto, o pobre homem apresentava apenas um quadro sério de verminose. Um mero parasitológico de fezes lhe ajudaria mais do que tanto custo e trabalho. De quando em vez os Conselhos de Medicina, alertam-nos para os cuidados com os exames. Lembram-nos que nada substitui uma boa consulta, onde as perguntas são abundantes e as respostas esclarecedoras. Onde o exame do corpo do doente tem seu lugar.
Facilmente esquecemos que há um número razoável de pessoas doentes da cura, ou, o que é pior, doentes da tentativa de descobrir qual é a doença. Estas condições são chamadas de doenças iatrogênicas. Exames de fezes ou de urina não geram nenhuma agressão física na pessoa exceto naqueles que, por serem muito ansiosos, ficam angustiados quanto aos resultados. No entanto existem exames que submetem o organismo a situações de perigo e, portanto, não devem ser realizados à toa. É importante ressaltar que na sua formação o médico é informado quanto aos riscos de determinados exames, mas infelizmente hoje em dia há uma poderosa pressão dos próprios pacientes no sentido de que lhes sejam indicados este ou aquele procedimento diagnóstico. E nem sempre o médico resiste. Mas deveria, pelo menos, esclarecer. Outras vezes a consulta é tão rápida que só resta ao médico pedir uma batelada de exames para poder ver o que não se viu (por falta de tempo), situação bem triste.

Aqui, no Vale do Capão, noto uma mudança radical nas pessoas. Antigamente morriam por desinteresse com a própria saúde e por excesso de aceitação da situação dolorosa vivenciada. A pessoa doente suportava estoicamente o desconforto até a morte. Ainda temos alguns assim, mas agora há uma agonia por descobrir o diagnóstico e a cura (quando possível) de preferência fácil e rápida. Uma mulher foi a Seabra e fez uma consulta. No dia seguinte me procurou no posto porque ainda se sentia com o problema. Ela só havia tomado uma dose da medicação receitada! Outra, desta feita em uma consulta particular, estava confortável porque sua mãe havia morrido, mas o médico tinha lhe dito o diagnóstico. Ela me disse que fora muito bom isso. Claro que é bom saber do que a mãe morreu, mas tem algo errado quando a informação substitui o sentimento. Não que ela não tenha sofrido com a morte da mãe, mas havia um prazer e uma segurança no fato (abstrato) do nome da doença.
E preocupa-me também esta pressa em resolver a dor. É uma porta aberta para cair nas amarras da medicalização da vida. Fica mais fácil quando cada dor, sentimento triste, agrura, pode ser “curada” por um remédio. Somos química, não há dúvida, mas também somos consciência, pensamentos, ciência, sensações e sentimentos. A química é fácil, a vida pode não sê-lo, mas a vida é inapelável e volta; a dor pode ser como estes rios da Chapada Diamantina que “engrunam”, ou seja, desaparecem entre as rochas, mas surgem mais adiante.
Não nos enganemos: O gozo de viver é fruto da dor de nascer.

Recebam um abraço gozoso de Aureo Augusto.

segunda-feira, 18 de março de 2013

AIPIM E REFINADOS


Quando cheguei aqui me admirei de ver o povo colher aipim e levar para a feira em Palmeiras ou Lençóis para, com o dinheiro auferido comprar bolachas. O interessante é que o aipim contém, além do amido (que é um carboidrato complexo), pequenas quantidades de vitamina C, Cálcio, Ferro e Fósforo. Não se trata de um alimento muito rico em termos nutricionais, mas contém fibras solúveis que faz com que a glicose seja absorvida lentamente pelo intestino, impedindo que haja piques deste açúcar no sangue, contribuindo para o bom funcionamento do pâncreas. Além disso, a fibra aprisiona os sais biliares que são a forma que o organismo encontra para eliminar o colesterol. Ou seja, o aipim contribui para que o colesterol abaixe. A fibra contribui para o peristaltismo intestinal e assim diminui a possibilidade de obstipação (prisão de ventre). A prisão de ventre aumenta a possibilidade de hemorroidas, apendicite, cálculos na vesícula biliar, diverticulose do cólon, diverticulite, câncer de intestino grosso, varizes nas pernas. Quando temos um bom funcionamento intestinal, temos menos possibilidade de pegar todas estas doenças. E a fibra dietética é importantíssima para o bom funcionamento do intestino.

Já a bolacha é muito rica em amido e só. Não contém outros nutrientes, sendo paupérrima nesse aspecto. Não tem fibras. Alguns consideram que certas comidas refinadas, como bolachas, açúcar, pão, macarrão, arroz etc. não são alimentos e sim anti-alimentos. Têm alguma razão, pois os produtos refinados exigem do organismo o uso de vitaminas (como aquelas do complexo B) que elas não trazem e deveriam trazer. O trigo integral tem vitaminas B, mas quando é refinado perde estas substâncias tão importantes. Aí só nos resta comprar medicações chamadas de suplementos dietéticos para compensar a falta. Assim gastamos dinheiro duas vezes. Pode ser que você goste, eu não.

E a situação é mais triste quando vemos pessoas com poucos recursos comendo produtos que a largo prazo levará a prejuízo. O pai de família se sacrifica, sua a camisa, e compra alimentos incompletos que inclusive podem até prejudicar sua prole. Como o povo do Capão, achando que aquilo que vem da cidade, como a bolacha, é melhor do que o que sai da roça. Ledo engano. O valor agregado representado pela bela embalagem é algo assim como uma falsidade ideológica. Parece que é uma coisa, mas é outra.

O povo daqui começou a reconhecer o valor dos produtos daqui, coisa que me traz grande alegria, mas agora outra luta: a invasão dos baratos, práticos e (dizem) apetitosos salgadinhos. Ufa! Alguém disse que o preço da liberdade é a eterna vigilância, o da saúde também.

Recebam um abraço saudável de Aureo Augusto.

terça-feira, 12 de março de 2013

D. LICINHA e a MORTE


Estava em Lisboa (em 2010) quando D. Licinha faleceu. Escrevi o texto que se segue e só agora o publico em parte porque o assunto morte é recorrente em minha produção, mais do que qualquer coisa pelo fato de que me dói pensar no que se perde quando um idoso se vai. Tanto conhecimento... Bom, convido-o a saborear os pensamentos que esta morte me trouxe:

Uma senhora muito especial. Não era uma mulher comum, inclusive nos seus costumes. Não me lembro dela, exceto quando padecendo de forte sofrimento, com o rosto vincado pelo mau humor. Teve um importante papel na história deste lugar, não como algum tipo de heroína (que por aqui não tem muito esse negócio de herói e heroína – sendo tais títulos direito de todos, pois subsistir e viver em um lugar como esse, naquelas épocas de um passado tão duro, só para seres míticos). Dizia, não como heroína, nos termos de guerras, ou trabalhos, mas importante pelo fato de ter sido uma pessoa que marcou seu tempo e sua gente. Já a conheci viúva. Seu Piroca já tinha morrido quando vim morar no Vale. Ele era uma das pessoas que cuidava da saúde do povo em uma época onde médico era difícil. Dizem que ele havia estudado no sul do país alguma das ciências da saúde (talvez mesmo medicina), porém não concluíra o curso por questões financeiras. Retornando a sua terra passou a ajudar os vizinhos quando necessitavam, graças ao seu conhecimento das qualidades das plantas, até que faleceu. Ela seguiu em frente e criou dentro de suas possibilidades aos filhos. Acompanhei sua longa enfermidade e seu sofrimento; via sua alegria quando ia visitá-la. Agora deixou um lugar vazio.

Observo que o povo do Vale lida com a morte com certa ligeireza. Acredito que isso vem da luta que era a mera subsistência no passado. Há 50 ou 70 anos ninguém podia dar-se ao luxo de prantear os seus por largo tempo. Havia que catar o café, limpar a roça, parir crianças, revolver serras, garimpar, ralar, serrar, torrar, moer, comer e, por fim, morrer. Talvez por isso durante as exéquias a dor se manifeste em tantos brados por parte das mulheres. Os homens mantêm-se um tanto distantes, até aparvalhados alguns. Há entre eles os que mostram saudade, não há dúvida, mas não tanto quanto as mulheres próximas, que até desmaiam, ou aparentam – e comento assim porque há algo de teatro nesta dor, conquanto haja a dor. Algo assim como a frase de Pessoa: “O poeta é um fingidor, finge que é dor a dor que deveras sente”.  Algumas mulheres vi e para mim era claro que faziam uma espécie de ato a ser visto; não que a dor não lhes tocasse, mas me parece que ademais de sentir, havia que demonstra-lo e de forma o mais evidente, inquestionável, inequívoca e gritante possível.

Depois, dá a impressão que, uma vez enterrado o defunto, volta-se ao dia-a-dia até com certa pressa. Os parentes íntimos ainda ficam naquele lusco-fusco obnubilante de dor e saudade, por mais uns dias. Algumas pessoas guardam a lembrança por anos, mas a maioria, me parece, esquece mais rápido do que devia. Entenda-me, não penso que se deve parar a vida como enterrar os vivos para celebrar os mortos. Há que sofrer e deixar passar, porém sem fugir da dor. O filósofo José Gil (in Portugal, Hoje, O Medo de Existir) comenta que “todo o cerimonial do luto visa reinscrever nos vivos o morto”. Diz ainda que morto e enterrado com o luto patente, “torna-se um antepassado que dá força aos vivos”. Caso isso não aconteça, os mortos permanecem como fantasmas a assombrar os vivos. E o fato é que os mais ligeiros na dor, pelo menos por aqui, são os que mais têm medo dos mortos. O medo aos mortos é uma instituição no Vale do Capão. Não entendo como podem temer tanto a quem amaram (ou amam). Em certa medida isso faz eco à maneira com que os bretões (da Pequena Bretanha) se relacionam com os seus defuntos. Havia muito medo. Coisa que era oposta à forma com que os antepassados destes mesmos bretões se relacionavam com o mundo do além. Antes do cristianismo a vida após a morte era mera continuação da vida atual, não havia rupturas ou medos. Era normal. Depois a morte se desnaturalizou. Talvez no Capão as coisas tenham corrido de modo semelhante. Os mortos passaram a ser ameaça. Pelo menos para a maioria.

Lembro-me das pessoas que se foram daqui e que eram meus amigos. Trovão (Delfino), Dedê, D. Pequeninha, Seu Chico Branco, Seu Chico Preto, Seu Anísio (Ah! O velho Anísio), D. Antônia (a parteira), tanta gente... Agora D. Licinha.

Recebam um abraço vivo de Aureo Augusto.

segunda-feira, 4 de março de 2013

CAMINHANDO PARA O TRABALHO


Nem sempre posso, pois todos os dias pela manhã tenho várias tarefas que interessam ao dia-a-dia de um “dono de casa”. Jogar o lixo orgânico na composteira, tomar banho de rio, rachar lenha, preparar o desjejum e come-lo, ordenar o que precisa levar ao trabalho etc. Por isso nem todos os dias posso ir a pé para o trabalho. Hoje fiz isso.

A caminhada hoje começou logo de cara com um sabiá pousado numa estaca na porta do consultório. Feliz cantava e não se assustou comigo. A ave foi o prenúncio de um agradável passeio. Caminho de pés descalços, o que sempre é tema de numerosas piadas pelo meu caminho, o que mais ainda me alegra as manhãs. A cada passo cruzo com um dos meus tantos vizinhos e sempre trocamos algumas palavras desejando bom dia, informando alguma coisa necessária e, principalmente, rindo. Sou abençoado com o riso e a alegria dos meus vizinhos!

À chegada ao posto, as pessoas que ali estavam já me saudaram comentando o nu dos pés, rindo do nu de minh’alma naquele momento de gloriosa tranquilidade. Tenho uma sorte e tanto por haver escolhido morar neste lugar. Sim. Muitas dificuldades aconteceram. Morar no campo (sem ser camponês, ou mesmo sendo) traz desafios significativos; até porque o silêncio pode ser insuportável. Quanto mais silêncio fora, mais nos ensurdecemos com o barulho interno. Acredito que é por isso que tantos que aqui vêm a passear em posse da paz que supostamente encontrariam aqui, acabam se envolvendo em farras, cervejadas e, tantas vezes, deixam o som bem alto em seus carros. Parece-me que visam abafar suas ruidosas almas, ansiando serem ouvidas.

Há um silêncio no camponês. Um não pensar. Sei que isso está mudando e os jovens daqui não são como seus pais. Para o bem e para o mal. Hoje já não há como trata-los como quase escravos, como o foi nos tempos em que aqui cheguei. Têm mais vontade, mais desejos e o dom de tratar de lutar para conseguir fazer valer seus direitos e até mais. O egoísmo existe em maior proporção, até como sequela (indesejada, mas comum) da construção de uma pessoalidade. Por isso aquele silêncio já não é tão disseminado como quando aqui cheguei. Planos são elaborados, ideias. O mundo gira mais veloz e as coisas adquirem uma dinâmica mais rápida, mutável e estranhamente livre. Todo mundo pensa muito mais e externamente isso se manifesta pela nata de ruídos que pairam na superfície dos acontecimentos. Antigamente, contam os mais velhos, era comum escutar desde certos pontos do vale, o barulho das festas em Palmeiras. Hoje isso é impossível. Agora temos nossos próprios barulhos e os maiores não são externos. 

Talvez as pessoas do Vale do Capão venham a perder uma preciosidade inusitada: o silêncio. 

recebam um abraço silencioso de Aureo Augusto.