quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

PACTOS

Beli postou-se, com suas filhas, à porta de casa. Carregava uma garrafa pet cortada, à guisa de vaso, cheia de flores multicoloridas. Ficou ali por muito tempo. Esperou um bocado de tempo. Olhava para a ponta da rua enquanto conversava e manifestava suas preocupações e sua solidariedade à mãe de Alisson (que àquele momento se despedia pela última vez do filho em sua casa). Quando finalmente o enterro chegou, as lojas, os amercados, os restaurantes fecharam as portas como é de costume aqui no Vale do Capão. Beli pôde dispor suas flores para o jovem que não mais as veria.

Conforme o desejo do próprio Alisson, uma grande quantidade de motocicletas precedeu o cortejo – ele queria também cavalos, mas foram poucos. Vieram motociclistas de longe, pois ele era uma pessoa muito querida, tinha muitos amigos... Alisson e Rafael eram unidos até a medula, embora às vezes se desentendessem, com muito mais frequência estavam juntos nas bandalheiras que aprontavam, desde crianças. Quando Rafael, cansado de tantas confusões que armou por aqui, resolveu ir morar no Pati, Alisson foi com ele. Os dois fizeram um pacto (assim contam os amigos e o irmão) de morrer juntos e assim fizeram. Foi na noite de sexta para sábado, vésperas do carnaval. Rafael havia bebido e como sempre tentava arrumar confusão, desta feita com Dió, um rapaz que é muito tranquilo, que nunca – ao que me conste – teve briga com ninguém. Isso foi no bar/mercearia de Seu Joãozinho, pai de Dió. Por sorte (?) Alisson apareceu querendo comprar uma garrafa de vinho. Então Dió lhe pediu que levasse de graça a garrafa desde que dali retirasse seu amigo. Daí saíram de moto, foram ao Rio Grande, depois voltaram decididos a retornar ao lar. Tiveram uma forte discussão na qual quase saem no braço, mas depois fizeram as pazes e resolveram ir para Palmeiras, apesar de já ser 23 horas, sabe-se lá por que. Perto do Riachinho, havia uma caminhonete para da havia já algum tempo. Chocaram-se contra ela com tal violência que o veículo estacionado, apesar do seu peso, foi deslocado de onde estava por mais de 1 metro. Pouco depois Enilson, pai de Alisson, vinha por coincidência passando no local e Vilson que estava com ele alertou-o de que se tratava do seu filho. Ele não acreditou de imediato e foi olhar o rosto, reconhecendo-o e recebendo dele o último suspiro. Rafael ainda respirava e foi conduzido ao hospital de Irecê. No momento em que escrevo estas linhas, ele está sendo conduzido para a sepultura, após dois angustiosos dias na UTI.

Diversos pensamentos me vêm à mente ao observar todos os acontecimentos ao redor destas dores. Os dois rapazes eram pessoas muito aflitas, conquanto não o reconhecessem. Alisson teve uma profunda decepção quando contava em torno de 8 anos. Rafael, embora tenha tido uma mãe cuidadosa que o amava e o pai que ali estava no dia a dia, sempre foi muito revoltado. Ambos destacavam-se pela inteligência. Alisson era um mecânico autodidata de mão cheia. Suas motos, ele as construía a partir de peças velhas. Era bem unido a Dê, seu irmão. Criaram uma borracharia e oficina de motos que tem bastante movimento. Mas Dê tem a cabeça mais no lugar e recentemente sofria (e brigava) com o irmão pelo fato de que este vivia uma vida destrutiva. Aconselhava-o, porém sem sucesso. Interessante que, apesar da vida desregrada, os adultos comentam que eles eram muito respeitadores. Quando eu tenho que atender alguém em casa, às vezes tenho que enviar a pessoa para o hospital, o que me faz voltar pra casa a pé ou de moto-taxi, pois o carro que veio me buscar fica com a tarefa de levar o doente. Se Alisson me visse nesta situação, interrompia seu que fazer e me levava em casa de moto, dirigindo com surpreendente cuidado e jamais aceitava pagamento. Tinha por mim uma consideração muito grande. Rafael, depois que se casou com Sinéia, filha de Maninho, ficou mais tranquilo e fez uma horta no fundo do quintal de cujos frutos sempre me regalava alguns. Gostava de me mostrar as suas produções e, mesmo bêbado, me tratava com deferência. Mas os dois, quando saíam para a farra e bebiam, deixavam aflorar aquilo que lhes fazia sombra à doçura e as coisas costumavam terminar em brigas ou acidentes. Alisson sofreu 5 acidentes graves de motocicleta – em um deles derrubou 4 moirões de cerca e ficou mais de 2 horas desacordado. Dentro lá do seu pacto, um não deixava o outro em paz, pois quando Alisson atendia aos apelos de Dê para trabalhar com ele, Rafael o chamava para o mundo tumultuoso e quando Rafael descansava no conforto simples de um lar com esposa e dois filhos pequenos, Alisson o requisitava. Combinaram uma vida atormentada e foram fiéis um ao outro e à sina que elaboraram para si.

Os mais velhos olham-se em interrogantes. Os jovens demonstram sentimentos ambíguos, inclusive de revolta. Todos se esquecem de que aqui nesta região as vidas têm sido apaixonadas. Muitos se deixam levar pelas fortes paixões, por raivas atemporais, medos infundados – ou fundados em elucubrações decididamente bizarras – pactos nem sempre estabelecidos assentados sobre fidelidades intrigantes, ádvenas embora aparentem ser autenticamente próprias. Coisas como um grupo de estudantes perderem o ano porque uma delas não se saía bem em dada matéria e as demais não queriam ir adiante sem a companheira – algo bonito, mas que pode virar coisa perigosa. Aqui, as leis são aquelas que obedecem ao que deseja a vontade; e esta vontade pode ser a da família, pode ser algo parecido com uma teimosia infantil, pode ser fruto da crença em uma condenação declarada (ou sub-reptícia) por uma mãe, um pai, pela sociedade, por um grupo de amigos, sei lá... As leis consuetudinárias locais muito dependem do gosto. É meu amigo ou faz parte do meu grupo político, então se faz algo errado pode ser visto como errado, mas aceita-se, ou passa a ser certo. O mesmo erro feito por um estrangeiro, forasteiro, por alguém de outro grupo ainda que nascido aqui, é abjeto pecado. Talvez este comportamento em que o iníquo pode adquirir ares de virtude derive das agruras dos tempos em que o diamante era farto, quando grupos se digladiavam pela posse das áreas mais ricas e onde a fidelidade ao bando era a maior de todas as virtudes e talvez única possibilidade de sobreviver, quando não de enriquecer. Talvez. Porém trata-se de um anacronismo que seguramente nos faz mal nos dias de hoje.

O povo conta muitas histórias e nelas dor e sofrimento, abandono e horrores se abraçam na construção das lendas. Nelas lições desvelam-se para o ensino dos jovens, nelas também, encontramos as marcas daquilo que já não deveriam fazer parte da vida.
Recebam um abraço melancólico de Aureo Augusto.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

FALSO INTERNAMENTO E FELICIDADE

Ontem, sexta-feira, saí do posto com aquela sensação agradável de que tive uma semana produtiva, na qual pude ajudar meus vizinhos a melhorar a qualidade de vida. Estava cansado com aquele cansaço agradável depois do serviço que dá uma sensação de felicidade suave. Sempre que estou assim retorno para casa bem devagar escutando música ou cantarolando conforme volte de carro ou a pé. Véspera de carnaval, o Vale cheio de visitantes, olhava a cara do variegado número de pessoas incluído na denominação turista, ávida por experimentar o lugar.

No caminho encontrei uma pessoa que gosto muito, que foi minha colega na DEP (Dinâmica Energética do Psiquismo) e ela ficou muito surpresa e demonstrou grande felicidade por me ver, como se eu tivesse retornado do túmulo. Então me explicou que havia recebido a notícia que eu estava internado no Hospital Aliança em Salvador com um quadro grave e mortal. A surpresa feliz para ela e para mim nos fez rir bastante. Ao me despedir fui pensando com meus botões o porquê de estar tão feliz com a notícia. Dei-me conta de que tantas vezes deixamos de notar a glória incomparável que é gozar de boa saúde. Fui uma pessoa que na juventude teve muitos achaques que, graças a modificações na alimentação e demais hábitos de vida, atitudes e de pensamento consegui alcançar um grau de bem estar muito bom. Por isso tenho sempre uma sensação de que sou um sobrevivente, de que estou tendo uma espécie de prorrogação, de modo que, grato, procuro divertir-me ao máximo. O problema triste é que nem sempre mantenho a consciência disto e deixo-me levar por aborrecimentos nem sempre dignos de minha atenção. Naquele momento me veio muito clara a gozosa situação de não encontrar-me internado em um hospital e sim partilhando a vida com pessoas que amo, plantas, pequenos animais, paisagem que transborda-se em beleza ao meu olhar. Ah! Que bom estar aqui, agora e neste agora que escrevo, esperando no consultório uma pessoa para dar consulta, escutando o farfalhar da chuva abençoando a terra.

Não sei bem porque algumas pessoas alimentam suas almas com o veneno do divulgar males. Sei que existem pessoas que se especializam em mandar vírus para os computadores dos outros através da internet e que estes provocam danos, às vezes irreversíveis. Tento imaginar como deve ser a mente destes indivíduos e tenho alguma dificuldade. Sei que trabalhar com práticas que incitam à modificação dos hábitos de vida traz como uma das respostas em quem não consegue mudar o desejo de que fique eu doente. Nem todas as pessoas são como a minha amiga citada acima, que estava sinceramente compungida com o meu suposto sofrimento. Alguns sentem um alívio. Algo como: “Ah! Se ele está assim tão doente é porque seus conselhos de saúde não servem para nada, não preciso sacrificar-me seguindo-os”. E sentem um tremendo alívio. Esquecem que alimentação não é tudo. Tenho visto tantas pessoas muito rigorosas em sua alimentação, mais ainda do que eu, adoecerem por raivas, dores, decepções, sofrimentos e aflições. O mundo é vasto e o ser humano jamais poderia, dada a sua complexidade, ser reduzido a uma teoria ou a um conjunto de reações químicas. Pobre de quem crê em uma simplicidade simplória e mais pobre ainda aquele que põe sua força na força do outro, encontrando satisfação, justificativas e dor nos espelhos da alteridade.

Dá-me alegria viver no mundo moderno, onde a cada dia nos damos conta de que somos nós os verdadeiros responsáveis pela nossa felicidade e bem estar. Os demais são desejáveis exemplos, desejados conselhos, apoios insubstituíveis, parceiros em uma existência que jamais poderia ser sem parceria, porém está reservada a si a última palavra. Nós mesmos, sem desculpas externas somos chamados (por nós mesmos) a definir o que queremos da vida.
Recebam um abraço carinhoso (e chuvoso) de Aureo Augusto.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

HOMENS CUIDANDO

Confesso que nestas férias a preguiça foi grande, pelo menos para a escrita, porque em outras artes fiz muita coisa e daqui a algum tempo vocês vão saber. Mesmo com a preguiça deliciosa, escrevi a pouco:
Estava na praia sentado sob um sombreiro e observando o ir e vir das pessoas e das ondas. Então vi uma menininha de seus 2 pra 3 anos ladeada por dois marmanjos altos e já dando mostras daquela barriga de cerveja que assalta os homens (e cada dia mais às mulheres) após os 30 anos. A cena me tocou pela sua beleza e pelo que me trouxe em um mundo em mutação. A criança tinha o corpo perfeito, bem plantado, indicando uma boa criação, mãe e pai presentes. Lindo ver os dois homens (um era o pai e o outro, tudo indica, tio dada à semelhança com o primeiro) dando atenção real à intensa conversa da criança. Foram e voltaram por um bom tempo sob meu olhar e era marcante como prestavam atenção ao que dizia a criança respondendo-lhe ou comentando algo quando necessário. Quando retornavam pararam perto de mim e os dois pegavam água na concha da mão e molhavam a criança, pois o sol era forte e assim a refrescaram. Depois seguiram conversando.

O que observei ali: Dois homens cuidando. E o seu cuidar era muito presente e muito masculino. Não eram mulheres. Estamos bastante habituados a ver mulheres cuidando; e há um jeito feminino neste cuidar que alguns homens de alguma maneira também conseguem manifestar, o que é bom. Porém aqueles dois cuidavam da garota de uma maneira muito masculina. Foi isso que me causou admiração. O cuidar do homem pode ser (ou é) bem diferente do cuidar da mulher. A mulher tem uma tendência a uma proteção às vezes excessiva, algo como beberizar quem às vezes não é mais bebê. Um rapaz de tez muito clara estava também perto e entrou na água. Sua mãe deu-lhe um grito quando já estava um pouco avançado dentro do mar (um lugar bem protegido, sem ondas) e ele ficou em pé e mostrou a ela por sinais que a água mal lhe alcançava a cintura. E ele sabia nadar, como verifiquei em seguida. Pode ser que este cuidar feminina beberizante seja algo anormal de algumas mulheres, mas também há algo de gerar conchas de proteção. Aqueles homens me mostraram que o cuidado deles pode ser tão atencioso quanto o delas, mas diferente.

Hoje estamos vivendo momentos de transição, aonde a mulher vem assumindo papéis anteriormente vividos apenas pelo sexo masculino. Este, por conta do movimento das mulheres viu-se obrigado a se desidentificar daquele papel habituado pelo patriarcado há tanto tempo vigente e, como era esperado, perdeu algo do seu norte (e também do sul). Os dois sujeitos que vi na praia com aquela garotinha que se mostrava tão feliz e dona de si me mostraram que nós, a fração masculina da humanidade, estamos encontrando caminhos masculinos para demandas atuais, como aprender a cuidar, ser carinhoso, atentar para o outro, mesmo quando o outro é uma coisinha quase inaudível.
Em 6/2/12, recebam um abraço masculino de Aureo Augusto nesses últimos momentos das férias.