quarta-feira, 30 de março de 2011

A FÉ

Em 2007 escrevi este texto, e acho que continuo buscando entender estas coisas: Dia 12 de outubro, no Vale do Capão à tardinha, só quem é maluco pensa em preparar a janta. Todo mundo vai pra rua, pois as famílias que celebram o dia de N.S. Aparecida, desde o dia anterior estão preparando as comidas que serão distribuídas na festa. O povo vai de casa em casa, fartando-se e re-fartando-se de salgadinhos, pipocas, bolos e tortas caseiros, além dos bombons industrializados. Ninguém pode se queixar da vida em um dia como esse. Beli, uma senhora cuja família se dedica a um restaurante (o “Comida Caseira da D. Beli”), me pediu que fotografasse sua festa o que o fiz sem hesitação. Por isso assisti e registrei em detalhes uma orgia de fé, religiosidade, gula e alegria, tudo isso em altas doses. A dona da casa começou esta tradição há alguns anos quando seu filho, que padecia de fortíssimas enxaquecas, ficou curado após orações à santa. Ele já havia inclusive sido internado por causa das dores lancinantes e a cura foi impressionante e imediata. Nunca mais fui chamado para cuidar dele, nas emergenciais crises.
O Dr. Herbert Benson, um dos fundadores do Mind Body Institute, da Universidade de Harvard, nota que há um fator de cura em nós, e que tal fator não está definido pela bioquímica. Há algo mais e tem realizado estudos interessantíssimos sobre aquilo que denomina ‘Resposta de Relaxamento’. Segundo ele, uma vez que o nosso corpo relaxa e permite-se crer, mecanismos de cura são postos em funcionamento e que tais mecanismos são muito poderosos, conforme mostram seus e de outros estudos. É uma felicidade ver instituições de alto gabarito como Harvard abrigarem pesquisas nesta linha, que nos remete ao enorme poder de autocura.
Infelizmente o desenvolvimento da ciência muitas vezes gera uma negação de alguns aspectos não tão passíveis de medição sistemática, como o é o poder da cura interior. Nós, os médicos, aprendemos detalhadamente como funciona a fisiologia orgânica, quais os efeitos benéficos e deletérios de cada droga em sua ação farmacológica, estudamos os melhores momentos e caminhos para uma abordagem cirúrgica adequada, quando esta é necessária e, nestes laboriosos estudos, olvidamos que lidamos com um organismo dotado da capacidade de se curar, tanto do ponto de vista meramente químico/biológico, como de uma outra potência que está além do físico. A ciência não definiu se esta potência é apenas um epifenômeno resultante dos eventos materiais, como uma conseqüência da nossa evolução biológica complexa, ou se algo pregresso a esta evolução conduziu-a a esta competência. Mas não importa. O fato é que quando cremos a coisa funciona.
Confesso que não sou um primor de fé, no entanto testemunhei coisas interessantíssimas. Conto duas relacionadas com a mesma enfermidade. Quando aqui cheguei, há mais de vinte anos, conheci o Sr. Artur, homem pelo qual tive imediata simpatia. Ele padeceraa de miíase no nariz. Trata-se da eclosão de ovos de uma certa mosca. Ela desova em pele ou mucosa lesada e quando suas larvas nascem devoram os tecidos de suas vítimas. Seu Artur me contou que só ficou curado quando um benzedor rezou-o. Tratei as seqüelas da doença com bons resultados e ele ainda viveu muito para contar sua história. Verifiquei entre os vizinhos e todos testemunharam a seu favor. Era verdade, garantiram. O tempo passou e o velho Anísio, homem pelo qual tenho a mais profunda admiração (embora já falecido), apresentou um quadro idêntico ao de Seu Artur. Procurou um médico em Seabra que lhe receitou algo que poderia chamar de uma “bomba”, usada para tratar cavalos e bois com quadro semelhante. Seu Anísio usou a “bomba”, mas o resultado não foi o mesmo que os cavalos e bois apresentavam. Não deu nenhum resultado. Usou de novo e nada, e seu sofrimento aumentava a cada dia. Dores atrozes lhe consumiam, desesperando a mim como amigo e ao médico de Seabra. Aí resolveu ir ao benzedor, e foi. Lá mesmo, no momento da reza, as larvas começaram a sair, no retorno ao lar, o mesmo se dava e quando chegou em casa, milhares de vermes esbranquiçados rolavam de seu nariz caindo ao chão e atraindo a atenção dos vizinhos, até que todos caíram e o velho se livrou da dor, ficando como seqüelas uma lesão no conduto lacrimal direito que ficou entupido e uma deformação no nariz.
Por quais, inda insondáveis mecanismos, estes dois homens foram curados? Não sei, mas quero saber. Como saberei? Todavia não sei. Mas observo e anoto. Aliás, as conexões entre as coisas e os eventos merecem reflexão, principalmente quando pensamos em saúde. O filho de Seu Artur era um jovem raro. Não tinha boa saúde e fiz de tudo para que mudasse determinados hábitos alimentares muito prejudiciais. Tinha as paredes da casa repletas de gaiolas com passarinhos, coisa que eu, particularmente, não via com simpatia, mas, paradoxalmente havia uma simpatia entre o jovem e os animais. Um dia recebi a notícia que havia sido levado de urgência para o hospital. Como era muito querido, várias pessoas estavam em sua casa, com seus pais, aguardando notícias. Foi assim que, em determinada hora (que mais tarde verificou-se ter sido o momento de sua morte), todos os pássaros engaiolados que até então haviam permanecido em silêncio, dispararam a cantar intensamente e, logo depois, silenciaram.
O mundo tem seus mistérios. O bom é que somos inteligentes, sensíveis e curiosos. Um dia descobriremos a razão destes casos que contei e então outros mistérios mais se manifestarão de modo que sempre teremos o prazer de ter algo mais a descobrir.
Recebam um abraço de fé, Aureo Augusto

segunda-feira, 21 de março de 2011

QUEM 'GUENTA CRIANÇA?

Não gosto de pediatria. As crianças demonstram gostar muito do meu consultório. Regra geral os pais têm alguma dificuldade para conseguir retira-las depois da consulta, mas não me agrada vê-las doentes. Além disso, falta-me aquela sensibilidade dos pediatras e dos professores, no interpretar aquilo que querem dizer, nem sempre com palavras, ou às vezes com o seu uso peculiar das palavras. Por último, o processo de crescimento por si só traz desafios para os pequenos e o conhecimento claro desses desafios, apanágio de bons professores e bons pediatras, tem seus mistérios que não alcanço. Quando os recebo, logo lhes apresento lápis de cor e papel. Assim ficam logo à vontade, principalmente depois que vêm na porta os desenhos que as crianças fazem durante as consultas. Alguns se concentram tanto que faço a ausculta pulmonar enquanto rabiscam os papéis. Assim, posso conversar tranqüilo com os pais e ademais, acontece uma proximidade maior com as crianças. Vai daí que ao final me dou bem com os cabritos. Aqui umas historinhas deles por aqui:
O pequeno chegou no posto para consulta. A mãe o trouxe porque estava com muita febre. Olhei para ele, que estava bem abatido e depois de me abaixar para alcançar-lhe a altura, perguntei: “Então, o que é que você está sentindo?”. Ele, com aquela carinha redonda de criança de 3 anos, olhou para mim e respondeu: “É, Dr. Aureo, meu coração ta com soluço”. Imagine a ternura que eu senti.
Eric, filho de Yvanete, também com 3 anos, é uma das crianças mais deliciosas que conheço. Ele é impressionante. Põe muita atenção no que se fala e faz perguntas pertinentes. Os pais são dedicados aos dois filhos que têm e talvez por isso ele tenha uma atitude bem franca e aberta para com o mundo. Gosto de apreciar sua postura no posto. Ele quando chega aqui, é como se viesse visitar seus amigos. Fala com todos e conta coisas. Há poucos dias Yvanete veio pra consulta e ele, segundo ela, fincou o pé que vinha me visitar e ninguém o demoveu do intento. Quando fui chamar sua mãe, ele se adiantou e me deu de presente um saco que cuidadosamente trazia consigo. Eram jambos deliciosos. Ele ficou muito feliz com a minha receptividade ao seu presente. E eu ao ver seu rosto orgulhoso, olhando para a mãe, como dizendo: “Viu que foi bom eu vir?”.
Há um outro com pouco mais de dois anos. O cabrito é bem danado e a mãe tem dificuldade em controlar-lhe a traquinagem durante as consultas. Notei que quando eu batia o carimbo nos papéis ele ficava interessado. Então o nomeei meu secretário encarregado de carimbar os papéis da sua consulta. Então no momento certo ele, todo compenetrado, carimbou a receita no lugar que indiquei. Foi aí que olhou para a mãe com uma cara de orgulho que quase me mata. Estaboquei de rir e é uma pena que não dispunha de um vídeo para registrar o seu indescritível “eu sou o bom”. Até agora quando me lembro sinto um calor no peito!
Mas teve uma que me deixou com o coração como se fosse uma passa. Laura, filha de Nininho e Catinha. Ela tem uma cara de traquina que encanta. E, além disso, é efetivamente muito traquina. Inteligente, observadora, os olhinhos negros penetram tudo para investigar. A mãe veio com ela pra consulta e quando fui chamá-la já havia se adiantado e vinha para a porta. Então, me abaixei para dizer alô. Nesse momento, com aquela carinha incrível, olhou-me nos olhos e disse: “Oi Doutor”. Foi como se uma flecha com 80 kg de ternura me atingisse o peito. Quase caí pra trás.
Esses pequenos são terríveis!
Recebam um abraço criança de Aureo Augusto

quinta-feira, 17 de março de 2011

VITAMINAS E SUPLEMENTOS

Nós estamos a cada dia mais conscientes do valor dos nutrientes e seu papel na formação (construção) do nosso corpo e também na manutenção da saúde. Há pouco tempo não era assim, mas felizmente a consciência do valor das proteínas, vitaminas etc. está cada dia mais disseminada. A tristeza é que nem todas as pessoas estão percebendo que os alimentos nos oferecem tudo o que necessitamos. Hoje existe uma florescente indústria de suplementos alimentares que movimenta bilhões de dólares graças à convincente insinuação de que os alimentos não são suficientes. Estudos pouco comprovados apregoam nos meios de comunicação as qualidades quase mágicas desta ou daquela vitamina ou substância, e logo aparecem os comprimidos nas farmácias prontos para o consumo. Esquecemos que há milhares de anos a humanidade vem existindo sem tais comprimidos. Muitos povos descobriram a melhor forma de usar os alimentos de que dispunham e isso fizeram para o próprio bem. Os índios de Vilcabamba no Perú, por exemplo, despertaram a atenção do mundo pela quantidade de idosos com mais de 100 anos entre eles. E isso por causa de um estilo de vida e uma alimentação onde as frutas e os legumes têm papel principal. Os suplementos nutricionais são muito úteis em determinadas situações, porém não devem ser usados indiscriminadamente. Veja uns exemplos:
1. O ferro é um mineral muito importante contra a anemia. Porém em excesso ele se transforma em um radical livre (substância que aumenta o envelhecimento e a possibilidade de câncer). Comendo cenoura, couve ou mamão você se protege contra isso, porque a vitamina A presente nestes alimentos impede que o ferro se transforme em radical livre. Por isso convém receber o ferro que está na couve porque já vem com a vitamina que impede-o de tornar-se radical livre.
2. A vitamina C é maravilhosa; isso todos sabem. Mas em excesso, como encontrada nos suplementos, pode induzir a formação de substancias que atacam o material genético por produção de genotoxinas. A descoberta foi feita pela equipe da Universidade da Pensilvânia liderada pelo Dr. Ian Blair. O efeito negativo vem do uso abusivo da vitamina. Frutas com vitamina C protegem contra o câncer, mas o excesso não é bom. Blair considera que o efeito anti-cancerígeno vem do conjunto e não de um elemento solitário. Ademais, doses acima de 1g aumentam a glicemia em diabéticos, reduz a absorção de vitamina B12, B2 e ácido fólico.
O melhor, meus amigos e amigas, é comer o que a natureza nos deu, variando bastante e saboreando mais ainda. Caso seja imprescindível o uso de suplementos, consulte o médico.
Recebam um abraço vitaminado de Aureo Augusto.

terça-feira, 8 de março de 2011

CARNAVAL, ANSIEDADE e HÁBITO

Aí está o carnaval carnavalizando cada átomo de um Brasil que nele vive. Milhões de pessoas que deixam de ser pessoas para travestirem-se de foliões. Anonimamente colocados em torno de tambores e loucuras etílicas. Uma animação toma conta da vida como se nada mais houvesse. Ansiosamente lançam-se aos magotes, homens e mulheres, na gangorra da felicidade momesca. As crianças acorrem a aprender a farra. Nada de mal na farra, mas porque esta ansiedade da festa, de mostrar para todos uma alegria de trio elétrico? Escrevi o texto abaixo em 2006 e só tem a ver com o carnaval porque nele e seus semelhantes com frequência vejo a ansiedade de disfarçar a ansiedade.
Os dois maiores inimigos da saúde, ocorre-me, são a ansiedade e o hábito.
O primeiro está sumamente disseminado em nosso meio. É uma espécie de praga, uma epidemia. Parece que em nossa sociedade todos nós passamos por um curso para nos tornarmos ansiosos. O currículo é suficiente para obter um alto nível de sucesso, e são poucos os maus alunos que escapam ilesos desta escola. Às vezes penso que o processo começa antes de nascermos. Os medos, os receios de nossas mães, preocupadas com a sobrevivência do rebento, com as alterações que o corpo delas está sofrendo no evoluir da prenhez, também angustiadas porque seus companheiros não demonstram participar da gravidez, quando não as abandonam, tristes porque depois do parto pode ser que seus corpos não mais voltem à elegância suposta ou imaginária que tinham antes, enfim, uma infinidade de motivos, que por meios químicos e outros insuspeitos atingem a criança no ventre e as “educa” para que no futuro sejam dignos ansiosos. Depois vem o parto, com sua carga de receios, pois em nossa sociedade não confiamos que um evento normal (como a gravidez) resulte em outro evento natural que é o nascimento. Uma vez nascido o neném é manipulado nem sempre com delicadeza, e em seguida, mais medos: Haverá leite? O peito vai cair? Entre outras preocupações. A criança cresce bebendo as dores dos pais, comendo suas alegrias, sorvendo apreensões que não são suas. Na mistura de amor e inquietação vai desenvolvendo sua capacidade de ser ansioso. A escola com seus professores e professoras tantas vezes insatisfeitos (com sua razão, mas o que a criança tem a ver com isso?); a seu tempo: O emprego, seja porque não há, seja por freqüentemente insatisfatório...
Não dá para descrever todos os detalhes desta instrução a que somos submetidos. É muita coisa! Importa dizer que com o tempo, adquirimos o hábito da ansiedade. Esta inquietação penosa passa a fazer parte de nossas células. Aí comemos correndo, vivemos no futuro e deixamos de gozar o presente, nos sentimos permanentemente ameaçados...
E os hábitos. Também apreendemos certos costumes que nos conformam. Quando não podem ser realizados, perdemos nossa identidade e nos sentimos como crianças no meio da praça constatando que a mãe desapareceu. A repetição perene dos mesmos padrões de pensamento, e dos regulares costumes que nos modelaram têm o dom de mitigar e paradoxalmente nutrir a ansiedade. Funciona quase como um Transtorno Obsessivo Compulsivo. Realizamos a tarefa (como se sem ela o mundo fosse sofrer alguma hecatombe) e logo após nos sentimos novamente vulneráveis. Assim seguimos nossos dias. E que ninguém se engane. Os jovens dizem que querem sair da rotina, e pensam que saem, mas seus pensamentos e suas crenças aí estão conduzindo-os pelos mesmos desfiladeiros que seus pais passaram, apesar de travestidos de novidade.
Encontrar solução para esta situação deveria ser um movimento global, tão forte quando o movimento pelo meio-ambiente (inclusive porque este sofre muito graças a nossa ansiedade). Às vezes quando meus hábitos anacrônicos me tomam, percebo que só me resta respirar. Respiro. Então me vem a possibilidade de reflexão ou contemplação. Ocasionalmente instala-se um sentimento de comunidade com o Universo. Uma forma de paz. Não significa que me sinta protegido contra a possibilidade de acontecimentos nefastos vindos, por assim dizer, do nada. Ocorre que de repente, em um átimo e nem sempre por longo tempo, percebo que não importa o que aconteça, aqui estou, eu sou. Se a ansiedade tem em seu bojo o medo do aniquilamento, estes momentos informam que o existir é irrevogável.
Recebam um abraço carnavalesco (rsrsrs) de Aureo Augusto.