sábado, 22 de maio de 2010

VERDADE INDETECTÁVEL

Ela era uma jovem bela, com um sorriso situado entre a matreirice e a timidez, além de um corpo que inspirou muitos desejos na juventude daquele distante lugar onde vivia. Lá um dia se interessou por um rapaz o qual deixou a esposa, uma daquelas amélias, sempre dizendo sim, sempre aceitando todas as suas idéias e acompanhando o marido em todas os caminhos. Não se sabe se ela, a jovem bela, não a esposa (boa pessoa, mas um tanto sem graça) foi quem deu o passo na direção do rapaz ou se foi este quem insistiu para que algo acontecesse. Fato é que se juntaram e os destinos de ambos se atrelaram por um bom tempo. Até que se soube que o cara abandonou-a, reorientando sua vida para o caminho daquela esposa sempre obediente e pronta para retornar com ele no momento em que os azares da vida o fizeram ver nela de novo alguém a quem poderia olhar com aquele sentido de ser dois. Mas o que se conta, conquanto ao certo ninguém sabe o que de certo aconteceu, é que ela, vivendo com ele, olhou tentada por um vizinho o qual por sua vez já tinha dona. Contam que engravidou deste vizinho e por isso a coisa desandou e foi tal o desandar que dizia àqueles mais próximos que queria perder a criança e que isso de melhor era para todos. Mas o que contam, sem endereço certo, ou seja, sem que se saiba de testemunho presente, é coisa sem muita validade.
Certo mesmo é que o médico a viu em companhias bizarras bebendo farreando muito, coisa que sua religião, naquele distante lugar jamais iria perdoar. Notou ele que seu agir estava em franco desacordo com o que dela já conhecia. Certo também foi que um dia lhe correram a chamar, melhor dito, o rapaz aquele que havia largado e voltado à esposa veio busca-lo em sua casa lhe pedindo ir vê-la que estava mal. O médico colocou o sobretudo que o tempo pedia e acorreu a ver a mulher que sofria. Ali a examinou e a história dela dizia de muitas cólicas iniciadas tão logo engravidara de uma desejada criança. E nisso ia até que agora, após quase quatro meses, muito bem catalogados, eliminara com dor atroz uma coisa globosa e muito sangue. O exame ainda mostrou o útero grande e sinais de que o abortamento não fora completo e que haveria risco para a vida da mãe, havia que ir ao hospital. Ela mostrou-lhe lágrimas porque o pai, e citava o nome do rapaz que havia ido buscar o médico (e que não era o vizinho que tanto se falava por aí) estava bastante contente com a gravidez e com o filho e agora esta perda era triste – mas o médico sabia que o rapaz já estava instalado na casa com aquela que era a sua esposa antes abandonada e agora retomada – e olhava longe como para apaziguar a dor...
Enquanto retornava para casa, curvando-se em consonância com as árvores ao vento, pensava se ela não sabia que o rapaz já estava com a esposa, ou será que ela chorava porque sabia, mas confiava que este filho novo lhe garantiria sua fidelidade a si, e era, portanto, um investimento àquela altura frustro. Porém, a esposa abandonada ela também tinha filhos com o rapaz, filhos estes que nada garantiram para ela. Por outro lado, se ela tanto queria aquela criança, porque a vida desregrada que adotou sabendo-se grávida? Ela lhe negara peremptória qualquer ato abortivo. Mas será? Outrossim, pode ser que o rapaz, depois de algum tempo, enciumado ou não do vizinho, com razão ou não, olhou por si só (com ou sem motivo especial) para a sua ex-esposa, e nela viu algo que antes não lhe tocara, ou que notara nos tempos do namoro e agora renascera. Pode ser que ele tenha se arrependido e voltado, como uma pessoa que faz uma viagem e retorna para casa, ou acorda de um sonho. Só que neste caso, a viagem, o sonho, era outra pessoa que não aceitou e sofreu. Algumas mulheres por estes campos usam de engravidar e parir para segurar homens – coisa que nunca deu muito certo, mas enfim... – e ela, a bela jovem no desespero quis e quando mesmo assim ele se foi ela oscilou entre querer e não e ficou alternando entre o cuidado materno e uma vida alheia à sua até então. O médico pensou tudo isso e pensou também que não adiantaria perguntar, porque ela jamais falaria a verdade. Há algumas coisas que as pessoas preferem ocultar. E, negar verdades, é uma forma de impedir certezas. Nem sempre é possível encontrar o que realmente aconteceu de uma coisa, e, registre-se, não apenas porque os protagonistas deliberadamente mentem, mas também porque aqueles que participam de uma história, vivem-na conforme crêem ou da maneira como suportam. Cada fato na vida tem o seu significado, mas este significado é construído não apenas com o fato cru, mas com toda a carga pregressa de tudo o que aprendeu-se, identificou-se, desenhou-se para si.
Nem história, nem medicina são ciências exatas!
Em 21/5/10, quero que vocês recebam um abraço, Aureo Augusto.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

ESPERANÇA TRAQUINA

Tenho andado com o tempo bem apertado. Já comentei em outro momento e repito aqui que esse papo de vida bucólica do campo só dá mesmo para quem não tem o que fazer (no sentido de que corre do trabalho). É impressionante como o tempo pare coisa! Por isso tenho escrito relativamente pouco (embora esteja escrevendo algumas coisas para a vida profissional que um dia partilho com vcs). Este texto que se segue, escrevi-o em 4/10/05, há mto tempo portanto, mas gosto de sentir de novo o que ele diz e passo pra sua apreciação:
A criança estava sentada no colo da mãe. Tinha 3 anos e uma beleza traquina com suas duas tranças saindo dos lados da cabeça. Olhou-me e abriu um largo sorriso. Brinquei um pouco com ela enquanto esperava a ficha da pessoa que já aguardava sentada na sala de atendimento. As crianças sabem encontrar uma brecha para a alegria, pensei; penso. Sei. Outro dia estava revendo as belíssimas fotos de Sebastião Salgado no livro ‘Retratos de Crianças do Êxodo’ (Cia das Letras). Conta-nos o fotógrafo que em sua labuta de registrar os tantos desastres que a humanidade impinge a si mesma, além daqueles oriundos dos fenômenos naturais, as numerosas crianças vítimas destes eventos sempre lhe pediam para que as fotografasse e ele o fazia para satisfazer-lhes o desejo. Depois de fotografadas elas se retiravam a brincar. Enquanto os adultos se matam, as crianças, aquelas que ainda conseguem manter-se crianças, brincam.
Não dou para ser pediatra, é que crianças não falam a nossa língua fácil para nós adultos. Reconheço nelas a língua delas, mas reconheço também em mim uma incompetência na tradução e, por isso, prefiro que pessoas mais afins com este tipo de linguagem se ocupem de cuidar dos pequenos (mesmo que as crianças acabem gostando de mim). Dizia que não dou para ser pediatra, e isso é a mais pura verdade, mas o fato é que gosto dos pequenos, divirto-me com eles, ainda mais porque aqui, no Vale do Capão, até o momento não tinha outro médico e, na falta de algo melhor, foi eu que atendi muitas das crianças que padeceram de algum mal. Que jeito! E se jeito não há, o que terá que haver é a disposição de se alegrar. Daí a menina de olhar travesso entrar em sua hora de consulta muito da satisfeita e depois fixar em mim seus grandes e negros olhos enquanto eu explicava para a mãe que ela estava com lombrigas, daí a inapetência que, mesmo com os vermes melhorou (contou a mãe) com o uso da multimistura que a ‘pastoral da criança’ tanto divulga. Enquanto isso a criança ria me olhando. É interessante como esta turma miúda habitualmente quando retorna para uma nova consulta ou para trazer os resultados dos exames (caso da menininha) em geral já se sentem em casa no meu consultório. Concordamos nós quatro (Marilza, a enfermeira, inclusive, que estava presente) com a terapia a ser usada e a pequena saiu saracoteando sua capacidade de transformar o mundo.
Saiu a criança derramando esperança nos olhares das pessoas...
Receba um abraço de Aureo Augusto.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

DOS ENCERRAMENTOS

Nem sempre é fácil fechar um período em nossas vidas. Há bastante tempo eu vivia em uma comunidade alternativa (esta palavra pede comentários, mas não os farei agora). Nela vivia um jovem muito agradável. Ele mostrava-se feliz por ali viver e foi assim durante alguns anos, porém com o tempo uma inquietação tomou conta de seu corpo e ele já não estava mais tão bem naquele lugar. Durante o período em que ali viveu, foi um colaborador excelente, mostrando-se delicado com os demais e um trabalhador ativo, contribuindo efetivamente para o próprio bem estar e para o conforto de todos. No entanto chegara a ora de seguir outro caminho, porque às vezes os caminhos se separam e a trilha que é a nossa vida, de repente, pode embicar para um lado inesperado. Pensamos que as sendas que trilharemos no nosso viver serão de um determinado jeito e, quase sempre, acontece mais ou menos do jeito que pensamos. Mas ‘quase sempre’ não é ‘sempre’. Por isso sempre ‘alguma vez’ o de vez em quando se revela na tortuosidade do caminho.
Só que, como disse antes, nem sempre é fácil finalizar... Aquele jovem amava o lugar e era-lhe difícil afastar-se. Que fez então? Começou a ver com agudeza os defeitos do lugar e das demais pessoas que ali habitavam. Os tais defeitos sempre estiveram ali; e as qualidades não desapareceram, mas agora ele não conseguia afastar da visão os aspectos negativos da comunidade. Por sorte era pessoa bastante querida dos demais, que se preocuparam quanto ao que estaria acontecendo com ele. Nas muitas conversas que se estabeleciam durante os trabalhos ou descansos, aproveitava-se suas ausências tornando-o assunto delas; começou a nascer em alguns dos demais residentes um ressentimento, decorrente do fato de que ele havia mudado; outros eram mais compreensivos e queriam discernir o que nele se passava. Após algum tempo descobrimos que ele queria sair da comunidade, mas não sabia como faze-lo. Foi uma revelação! Inclusive para ele. Fui o encarregado de comunicar nossa constatação ao jovem, em uma de nossas reuniões periódicas; por isso, disse-lhe que já que ele queria sair, que o fizesse em paz, não era necessário encontrar motivos negativos para tanto. Podia faze-lo pelo positivo motivo que ele estava crescendo, que era jovem, o mundo e um mundo se abria a sua frente, daí era o mais natural que fosse ao encontro desse mundo. Desde esse momento as coisas seguiram um curso de paz saudosa.
Essa experiência me tem ajudado porque muitas vezes muitas coisas se terminaram em minha vida. No seu tempo eu também saí daquela comunidade; já morei um período no Chile, fechando um tempo em Salvador, minha cidade natal, para onde retornei, quando se completou o tempo fora do país; encerrei a quadra de moradia na grande cidade e vim para o Vale do Capão; trabalhei em vários hospitais, passei para outros, dos quais, a seu tempo também tive de me despedir. Nem sempre as finalizações foram a contento, porém a partir daquele episódio tive um mapa facilitador para mim e espero que possa essa leitura ter a mesma serventia para o leitor, afinal, se nós fossemos passar por todas as experiências úteis para adquirirmos todo o aprendizado necessário a uma vida harmônica, não haveria tempo de vida que desse. A história dos demais, se bem apreciada, vira experiência própria.
Aureo Augusto.

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Você notou que o tempo está encolhendo?

Você já notou que o tempo está encolhendo? Parece que já não há mais horário em nossas agendas e o ano nem bem começou e já se aproxima o São João. Alguns me dizem que está ocorrendo algo com o universo ou com a Terra e por isso o tempo está mais curto. Acho isso muito engraçado, porque, penso, se o tempo universal está encolhendo, nós, seres humanos, que estamos subordinados às leis do tempo não perceberíamos porque tudo estaria também mais rápido, inclusive nós, claro.
O tempo é em muito uma subjetividade e antigamente as pessoas não tinham pressa e não o tempo parecia se estender. Hoje, temos uma quantidade de compromisso tal que não cabem nestes intervalos temporais que denominamos horas do dia. Quando eu era criança meus compromissos eram com a escola, os deveres de casa (não muitos) e o restante das inúmeras horas de correrias e estripulias que variavam desde picula e guerrô a corrida de caracóis e guerra de bombas de São João. Isso sem falar de fura-pé, guiador, arraia, banho de mar, corrida nas pedras limosas da praia, caída nos Armazéns Gerais, e bota etc. nisso. Mas nada disso com hora marcada!
Hoje a criançada sai (aqui no Capão) da capoeira, para o circo, escola, deveres etc. tudo com hora marcada e na cidade grande a coisa é mais séria, pelo número de compromissos e pelo trânsito impiedoso. Quanto aos adultos a coisa é ainda pior! Por isso, parece-me o tempo ficou pequeno.
Mas o que fazer? Há coisa demais. Confesso que às vezes me ressinto disso, embora meu ‘avoamento’ me faz ficar um pouco desligado, o que não me impede de tomar sustos quando me dou conta que tal ou qual coisa que tinha que fazer ‘daqui há muito tempo’ já está na hora de ocorrer ou já passou.
Talvez a única solução seja labutar para conseguir estar permanentemente em estado de auto-consciência. Conta-se que Sidarta, o Buda, recomendava atenção como postura eminente das pessoas. Ou seja, o tempo não passa tão rápido se estamos conscientes do que fazemos, do que somos, de onde estamos... Penso que é bom pensar nisso.
Recebam um abraço, Aureo Augusto.