sábado, 30 de janeiro de 2010

UMA MORTE NA MADRUGADA

Admirei-me do tamanho da lua sobre a serra do Candombá. Era uma bola gigante apoiando-se na orla entre o azul de poucas nuvens e o verde escuro da terra acidentada. Cinco da matina e eu cheguei à casa de uma pessoa muito sofrida. Poderia ser mais uma das muitas vezes em que a atendi. A senhora vinha de um longo padecimento e de muito desejo de morrer. Morreu.
Após constatar o falecimento comentei com o seu esposo que ela finalmente repousara. O seu filho, um rapaz magro e de modos nervosos, porém delicados, contou-me da labuta dos últimos dias, em que ela, muito fraca, recusava alimentos e quando os ingeria vomitava. Comentou de suas últimas respirações. O jovem fora dedicado à mãe. “Honrarás pai e mãe” diz o livro; este aí lhe será dada a palma pela dedicação. Fez o possível por ela. Sofreu com ela. Convidou sua esposa a auxilia-lo e ela não faltou. Olhei-o, a barba por fazer aos poucos se empapando das grossas lágrimas que escorriam pelo rosto.
A lua gigante escondeu-se e voltei para casa pensando na senhora. Ela, desde que me lembro, teve a vida como um fardo. Não gostava de viver. Até onde me vai a memória a dor, a repreensão, a queixa lhe eram mais companheiras do que o marido. Este, um homem pouco sutil, com um discurso acentuadamente religioso, mas que, tenho certeza, seus companheiros de fé reprovariam a conduta se o vissem dentro do lar e seus modos para com a mulher sofrentemente sofredora. Um dia ela amou um homem, dizem que se perdeu com ele. Gosto deste uso da palavra: perdeu-se com ele. É verdade que a paixão nos faz uma perda. Perdemo-nos de nós mesmos. Afogamo-nos no outro, ou melhor, no que no outro vemos ou sentimos como nós mesmos. Toda paixão tem uma algo narcísico. Porém a perdição mencionada na frase tem que ver com a idéia, convenhamos, falsa e até esdrúxula, de que rompendo-se o hímen, a mulher perde o direito a uma convivência social normal. Bom que esta sina perdeu valor na hodiernidade. Mas realidade foi que aquele que ela amou, perdeu o gosto por ela e após algum tempo se afastaram, não por desejo dela. Será que só a partir daí tornou-se amarga? Será que já o era e o moço percebeu que sua vida seria um sempre carrega-la inutilmente para a vida? Talvez você já tenha visto pessoas que menos vivem do que são mantidas na vida por outras pessoas, ou pela situação em que se encontram. É um custo para aqueles que estão ao redor sustenta-las. Pode ser que o rapaz tenha se desencantado. No início estas pessoas sofridas e sofredoras atraem porque se colam no nosso desejo de ajudar (no lado positivo) ou no reforço de nosso sentimento de onipotência. Mas logo vemos que o sorriso belo e oraliforme é ocorrência de um momento inicial. Logo os problemas (supostos no geral) e as dores (mais psíquicas do que físicas), a vitimização, ganham da paixão e do amor. O fato é que tempos depois ele encontrou outra mulher, esta bem alegre e com ela está até hoje. Aquel’outra que fora abandonada dedicou um ódio à nova amada, como se ela o houvesse arrancado dela. Quando a história me foi contada imaginei que havia ocorrido traição. Mas não foi assim. Tempo havia transcorrido até o novo amor se instalar no coração do sujeito. Há pouco tempo, a senhora que agora estava na cama, pálida e morta, procurara sua (suposta) rival para pedir perdão pelo ódio tanto tempo alimentado...
Aí a vida seguiu seu curso de sempre ter motivos para aborrecimento. Com a chegada das enfermidades confirmou-se o destino ao sofrimento. Para piora, apenas um filho dela cuidou com denodo. Sempre presente e, registre-se, criticado por toda a família por sua insistência em levar a mãe ao médico, a outro médico, ao hospital e por aí vai. O único na casa ao qual se pode avalizar as lágrimas.
Enquanto conduzia o carro pelos inúmeros buracos da estrada de cascalho aquela enorme mariposa voou à frente do pára-brisa, indo na mesma direção que eu. Sorri para ela como sempre o faço e ela desviou-se para seus próprios caminhos. Volto para casa olhando a luz do sol que ainda não nasceu, mas se anuncia.
Em 30/1/10, um abração, Aureo Augusto.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

MEDICINA OCULTA NO COTIDIANO 20

EXPLICA-SE TUDO
Joseph Campbel cita uma brincadeira de Robert Bly com as palavras do extraordinário René Descartes: Cogito Ergo Sun. “Penso, logo existo”, disse Descartes, ao que Bly acrescentou: “Penso, logo existo. A pedra não pensa, logo não existe” (1). Campbel, Bly e René, como sempre, estavam cobertos de razão. Razões, todos temos; tantas! Há razões para tudo, para cada coisa sua explicação. Todas elas, no mínimo incompletas. No geral falsas. Gosto de estudar, e o faço com afinco, as idéias dos grandes sobre todas as coisas. Os filósofos explicaram muitas coisas, assim como os cientistas e os religiosos. Interessante é que se desdizem com grande freqüência e, cada um vai antevendo sua parte da Verdade; abre uma janelinha, onde vê um pedaço do Todo. A partir daí labuta para derrubar as idéias dos outros, às vezes até com maior trabalho do que aquele usado para alcançar a compreensão alcançada. O mundo é isso. O universo funciona assim. Religião, filosofia e ciência ensinam muito, porém revelam pouco de um mundo muito mais misterioso do que o muito que ensinam. Os psicólogos evolucionistas são uma piada; os behavioristas são uma piada; os psicanalistas freudianos e lacanianos são uma piada; os filósofos racionalistas são uma piada; assim também os empiristas e os materialistas dialéticos e os espiritualistas; os cientistas são uma piada; eu sou uma piada! Os físicos estão labutando para encontrar uma força que unifique as quatro forças fundamentais (eletromagnetismo, nuclear forte, nuclear fraca e gravidade). Tenho certeza que se possível alcançarão tal intento. Confio neles, embora eles sejam uma piada. Ocorre que não basta tal unificação. Ocorre que o cogito ergo sun não é suficiente. Nada é suficiente porque o ser humano, o sabiá cujo canto acabo de escutar lá do outro lado da janela, a estrela que ilumina o dia e as demais que adornam o vestido da dama noite, a formiga célere caçando alimento, os morangueiros produzindo (obviamente) morangos, bem, todas as coisas e cada uma delas, são além da nossa possibilidade de explicar. Sou cético. E que não se pense que nisso há condenação àqueles que estudam, que explicam. Bebo-lhes as explicações com sedenta sede de saber. Sua sabedoria é, para mim, saúde. Somos nós, seres humanos, entes curiosos, não como um prazer apenas, mais como uma necessidade intrínseca. Sou assim, humano. Penso que é capital a importância de buscar explicar tudo. Ademais concordo com S. Pinker , quando diz que o nosso aparato neurológico é incompetente per si para compreender o todo e mesmo para compreender a si mesmo (2). Mas tampouco creio que um dia nos encontraremos em um beco sem saída. Acredito que somos tão parte deste mistério que é o mundo que somos dele resumo. Em nós ele está e, portanto, o apreendemos em nosso cotidiano, mesmo que não o percebamos. Pinker e outros especulam sobre o observável, Kant e outros especulam sobre o inominável. Todos têm razão. É que tão grande é o mundo que abarca a todos. Falta-nos com freqüência o reconhecimento de que não passamos de uma piada. Por isso, em excesso, nos levamos a sério; muito mais do que devíamos. No que concerne a mim, é uma pena que a maior parte do tempo não tenha esta consciência de que sou uma piada. Perco tempo em demasia levando-me a sério.
Aureo Augusto.

1.Campbell, Joseph, Reflexões Sobre a Arte de Viver, Gaia, São Paulo, 2001.
2.Pinker, Steve, Como a Mente Funciona, Cia das Letras. Vale, e muito, ver o que sobre ele diz, com razão, John Horgan in A Mente Desconhecida, Cia das Letras.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

NOVIDADES NA FESTA DO PADROEIRO

Ontem fui apreciar a procissão do padroeiro do Capão, São Sebastião. A igreja pintada de novo, a vila engalanada, o povo contente. Muita gente. Não pouca coisa, muita mesmo. Como nunca vi por aqui. Além dos populares e dos turistas, tinha uma razoável quantidade de um grupo de pessoas que se intitulam alternativos, mas que a população local (não sei de onde tirou isso) chama de micróbios. Claro que a pronúncia varia: micróbio, micóbrio, micróbrio, micóbi, micróbi etc. Mas todos concordam que têm esse nome porque vivem explorando os outros, são parasitas. O povo é duro nas verdades e no humor! Este grupo sabe as festas onde há distribuição de comida aqui no Vale e ficam ligados. Pode ser que não tenham relógio e neguem o calendário (pelo menos o gregoriano, já que falam muito no calendário maia), mas as datas do Cosme/Damião e de São Sebastião, estas eles não falham. O povo não se apoquenta muito não. Exceto quando ficam impertinentes e fazem exigências, que isso acontece às vezes. A festa foi e estava bonita quando por lá estava. Tem a novena, das quais não vi mais que os pipocos dos fogos que ressabiam nas paredes das serras quando os fogos salvam o santo, e que dura vários dias; a última começou de noite e, sua parte profana, no outro dia de manhã. Apesar da farra profanicamente respeitada e religiosamente festejada, poucos foram os casos de acidentes e não houve violência. Para mim muito legal porque é chato costurar bêbado. Você já tentou? Não queira. E quando dá pra vomitar? Já viu coisa mais fedorenta do vômito de bêbado? Mas a conversa ‘tá indo por um rumo que prefiro desentortar.
Dizia da festa que foi linda e teve uma surpresa e tanto. Todo ano são nomeados 3 festeiros. O presidente, o vice e o tesoureiro. Sempre são homens que têm algum suporte de mulheres por trás. Ou casados ou solteiros, porém no caso dos últimos com mães ou irmãs ativas. Desta feita, diferentemente do todo o tempo de antes, foi indicada uma presidenta. Todo mundo se surpreendeu e os aplausos subiram às nuvens. Ninguém se apegou às tradições para argumentar ou negar. Havia uma genuína alegria pela quebra da tradição. Muito legal. O mundo está mudando.
Muito legal também a atitude de Gleiton. Ele era até muito recentemente o enfermeiro do posto. Para tristeza de todos, no concurso ele se deu mal (andei verificando, ele no nervosismo marcou no gabarito tudo errado). Daí saiu do posto que está, até agora acéfalo, já que a enfermeira que o substituirá pediu 1 mês para pensar. Apesar da tristeza e de alguns direitos não haverem sido respeitados quando de sua saída, o fato é que ele, mostrando grande dignidade e amor pela população, aí estava atendendo a quem necessitou. Ontem foi dormir cedo porque na noite anterior ficara até tarde na festa. Alguém passou mal e desinformado de que eu estava na rua, foi até sua casa; ele atendeu, trouxe até o posto e pediu que me buscassem, atendeu comigo e ainda atendeu uma outra pessoa. Antes de ontem a mesma coisa e no dia anterior fez mais ainda: Me telefonou para que eu orientasse uma certa situação para a qual minha presença não era tão essencial. Como já disse antes: Que profissional Palmeiras irá perder.
Tem coisas que precisam mudar, outras, me agradaria que permanecessem. Não sei se tanto por esse meu gosto do que já me acostumei. Mais no mais das vezes porque são coisas boas para presente e futuro. Mas como disse José de Alencar, na última página do livro Iracema: “Tudo passa sobre a Terra”. Os antigos diziam ademais que “o mundo dá muitas voltas”. Fico aguardando as voltas deste passar.
Sem mais um beijo no coração de vocês, Aureo Augusto, 25/1/10.

domingo, 24 de janeiro de 2010

OS BICHOS

Outro dia, no posto onde trabalho, Marilza a auxiliar de enfermagem e Renilde, auxiliar de serviços gerais, comentavam dos animais. Renilde se aborrecia com os morcegos que, ao mordiscar as bananas na cozinha sujavam as paredes com suas fezes e também tinha ela medo do dia em que os bichinhos resolvessem chupar sangue. A custo convenci-a de que frugívoro não vira vampiro de uma hora pra outra. Tomara esteja convencida porque sua solução para os bichos é um tanto drástica. Nem vou dizer para não ferir os espíritos delicados. Nossa relação com os bichos e com os vegetais é paradoxal. De um lado nos encantamos com seus mil jeitos, com sua força e com sua beleza, de outro catamos em nós a violência na medida em que somos (real ou supostamente) invadidos. Invadimos, quanto a isso não há dúvida. E muito não notamos.
Gosto dos animais, e muito. Esses dias muito gostando futuquei os morcegos que na bistunta deles confundiram a linha do telhado com teto de caverna. Após alguns dias o aborrecido da brincadeira lhes fez optar por ir-se. Foi um momento a mais dos muitos em que tenho experienciado convivência com os mais variados bichos. Agradam-me em particular os selvagens. Gosto de cobras e ratos do campo, grilos, sariguês, morcegos e aranhas cabeludas, coelhos do campo, caxinguelês, meleiro, sagüis e galinha d’água... No momento desde há mais ou menos uma semana, temos toda noite uma correição de formigas em casa. São lava-pés, também conhecidas como jiquitaias. Elas fazem uns montinhos de terra fofa no meio da roça e quando pisamos nem notamos o macio. Muito depressa elas sobem pelas pernas e não mordem de primeira. Só depois de muitas metem as bundinhas na pele e a vítima sai pulando, igualzinho a pipoca. São bonitas, tudo sarará na cor. Elas, esses dias, entram pela porta da cozinha, distribuem alguns caminhos pela sala e vão para a despensa. Educadas, não comem nada, nem a rapadura ou a farinha de guerra. Olho e reparo que estão de passo. Ontem tivemos visita em casa pra passar a noite, visita humana. As jiquitaias foram educadas e reservaram só um caminho para uso. Não se espalharam e assim ninguém se bateu com ninguém e a noite acabou sem picadas.
Fascina-me esta presença. Fico olhando para seus caminhos e elas com suas bundinhas levantadas ameaçadoras e frágeis quando consideradas em suas individualidades. Ficam aos milhares paradas vigilantes postadas de um lado e outro do rio das demais que correm céleres indo e vindo. Até quando? Quem de nós vai se cansar?
As formigas, ocorre-me, não se preocupam muito com os demais. Em seu trabalhar, pouco se lixam para se onde passam é a casa ou ninho de alguém. Como um bando de maoístas fanáticos, desfilam igualitárias sua sumária justiça social aos nossos olhos, e sai de baixo quem tem individualidades mais marcantes. Tudo igualzinha, biológicas. A biologia delas ainda não produziu a complexidade tal que faça com que uma diga o ‘eu sou’ que nos faz a nós humanos capazes de injustiças. Elas são um bloco, como uma torcida de futebol, um grupo ideológico, ou um bando de religiosos prontos a salvar o mundo. Desde muito criança sou invocado com esses bichos pequenininhos que se fazem grandes na força do conjunto. Mal sabia ler e já havia descoberto que os cupins têm umas armas secretas que lançam contra inimigos, levava horas acompanhando formigas, térmites e cupins. Penso que temos a aprender com essa gente miúda, inclusive sem se asneirar julgando-os melhores do que nós; que na biologia não tem esse negócio de mais ou menos em termos de valores morais. Mas não só a miuçalha me atrai. Descobri a personalidade das cobras, umas mais outras de outro jeito, orgulhosas, os sariguês sem pressas e duros, ratinhos do campo curiosos e mistos de destemor e medo. Não é à toa que esopicos pensamentos em nós. Esopo em todos nós. Carecemos.
Em 24/1/10, recebem um abraço animal (do bem).

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

MEDICINA OCULTA NO COTIDIANO 19

CUIDADO!
A noite chegou de mansinho e nem percebi. Trabalhava nos teclados e palavras as memórias de pessoas doentes que foram melhorando, lembranças escritas de outras cuja saúde causa preocupação. Ser gente aqui na Terra tem seu risco, e a felicidade, ou pelo menos a saúde, é dom frágil. Coisa que requer cuidado, atenção e, paradoxalmente um certo descuido.
Há quem use da vida como quem tem uma posse que pode garantir acima dos percalços. Ocorre-me que isso é uma superstição como crer que gato preto dá azar. A vida é uma porta aberta para uma rua desconhecida. Cuidemos da porta e vigiemos a rua, sem, contudo, perder de vista que o desconhecido espreita e isso é bom. Talvez fosse agradável ter tudo sob controle. Talvez. Não sei. Sei que nos países onde tudo é muito bem controlado nem sempre a felicidade é fato corriqueiro.
Tomo o cuidado de não assumir posturas extremistas; não quero que me confundam com alguém que não se preocupa em nada com a saúde. Mas tampouco quero que pensem que está tudo sob controle rigoroso.
Há quem adote uma alimentação natural com a crença (vã) de que a partir deste momento estará protegido dos males que afligem a humanidade. Sabemos, é verdade, que numerosas enfermidades são fruto de maus hábitos. E, mesmo aquelas relacionadas com a genética, ou com ambientes poluídos têm seus efeitos minimizados através de uma alimentação de boa qualidade, mas isso não significa proteção absoluta. Melhor dizer que hábitos sadios reduzem as possibilidades do mal. Há também quem crê que muros altos e carros à prova de bala lhes trarão vida longa. Outros males estão à espreita. Há quem, com emprego garantido e seguros pagos, sente-se em paz com a vida... A vida espreita e, em uma esquina do tempo, o mundo pode dar mais voltas que o esperado, que aquilo estabelecido...
Durante a minha vida me descuidei de muitas coisas. Não percebi a necessidade de olhar para os lados antes de atravessar a rua, até que fui atropelado... devo dizer que esta frase é apenas metafórica, pois tenho a sorte de não ter sido atropelado. Mas a metáfora permanece como verdade. Hoje, olhando para trás e para o presente me dou conta dos riscos que corri e respiro aliviado ao tempo em que me disponho a olhar para os lados da rua antes de atravessa-la, e, ao mesmo tempo, sei que algo pode vir do céu. Por isso cuidado, digo para mim, tenha cuidado, mas esteja pronto para o que está além do que pode ser previsto.
Em 3/10/05

domingo, 17 de janeiro de 2010

MEDICINA OCULTA NO COTIDIANO 18

Ultimamente tenho negligenciado este tema. Hoje atrasei. Deveria ter colocado a mensagem na sexta-feira. Não foi por esquecimento e sim por trabalheira. Aí vai o assunto de hoje (escrito em 19/11/2005), relacionado com os cuidados para garantir saúde, usando um exemplo de uma mulher grávida:
SEMENTES AO VENTO
O que fazemos é como uma semente lançada ao vento, qualquer ato. Não como na parábola do semeador que saiu a semear, onde algumas sementes que caíram na pedra não puderam nascer. O ato será sempre algo que repercutirá. A nossa vida é cheia de banalidades. Mesmo que nem sempre seja banal algo que pensamos ser. Um ato trivial ao qual com enorme freqüência não damos a devida atenção é o ato de comer. Sentamos diante da televisão, conversamos com os amigos, mastigamos como quem olha o vazio... Em um mundo como o nosso, pleno de ofertas, às vezes nos perdemos nas escolhas e, os alimentos hoje estão nas vitrinas, talvez mais do que nas panelas. Comer é um ato/semente.
Ontem fui chamado a ver uma moça grávida aqui do Vale do Capão, que estava sentindo contrações. No início da gestação acompanhei-a, mas agora está sendo cuidada pelo posto de saúde (PSF) e soube que lá descobriram que estava com pré-eclâmpsia, que é um quadro onde a mulher pejada apresenta perda de proteína pela urina, pressão alta e inchaço. Trata-se de algo que merece cuidado porque se não tratado a mulher pode ter convulsões (e aí passa a chamar-se eclampsia), o que não é nada bom. Ao chegar em sua casa examinei-a e constatei as fortes contrações, mas, para meu desgosto (pois que lhe conheço toda a família e a vi crescer) não consegui auscultar o coração da criança. A pressão estava muito alta apesar da medicação que lhe passaram e, naturalmente encaminhei-a para internamento hospitalar. Infelizmente a criança realmente estava morta o que causou grande dor entre os familiares tanto dela quanto de seu companheiro.
Desde que era estudante aprendi que De Snoo já havia apontado o papel dos fatores nutricionais na gênese da toxemia tardia da prenhez (como era mencionada a enfermidade na Obstetrícia de Rezende, que tanto folheei), mas a jovem em questão era franca adepta do consumo abusivo de pão, biscoitos, e outros carboidratos, sempre refinados, porque, segundo ela, mais saborosos. Também, apesar das recomendações, nunca se preocupou em controlar o sal da dieta.
Os familiares me disseram que foi Deus quem quis. Aí me lembrei que estava em Santiago do Chile, escutando a Roberto, da Econatura de Pernambuco, fazendo uma palestra sobre o belo trabalho da cooperativa da qual participa. Ele dizia que uma das características da gente pobre da zona do sertão é em tudo botar a culpa em Deus e ele está coberto de razão. O problema desta postura é que não saímos da posição da vítima e não mudamos conduta, não plantamos boas sementes de comportamento. Se tudo depende (apenas) de Deus, nada mais há a fazer. E o que há a fazer? Entender que no mínimo somos co-criadores do nosso processo e caracterizar qualquer ato como sendo uma semente. Dentro do possível, escolher destas sementes aquelas que produzirão confortáveis frutos. Que assim seja!
Aureo Augusto, um abraço.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

PIPOCO E PARTO

Foi no meio da noite, já chovia forte, o telhado cantava desde bem cedo. Aos pouquinhos os trovões se aproximaram precedidos pelos rompantes de luz, fugazes, relampaguinos. O Vale do Capão dormia gostosamente, que a chuva é canção de ninar. De repente uma luz e um pipoco. Sempre que vem uma luz, espera-se o ronco do trovão, tanto mais próximo um do outro, tanto mais sabemos que o raio caiu por perto. Quando bate um pipoco bem pertinho da centelha “foi no quintal da casa”. Não teve ninguém que tenha ficado acordado por aqui naquela hora. Pensei comigo que havia sido bom ter tirado as coisas das tomadas. Lençolzei-me de novo mergulhando nos sonhos.
Foi aí que escutei gente batendo na porta. 3 horas da noite. Por sorte a chuvarada dera um tempo e pude sair com o marido da parturiente até a caminhonete que nos aguardava. Foi uma felicidade para mim. Ela já havia perdido duas crianças em gestações mal sucedidas do passado, agora, com acompanhamento muito próximo chegara à 41a semana. Quando examinei tinha o colo apagado e mais de quatro cm de dilatação. E o melhor, a criança estava bem baixa. Não ia demorar. Questão de mais 3 ou 4 horas. Não pude eu mesmo fazer o parto porque a coluna está bem acabada, daí encaminhei para Iraquara, onde tem uma maternidade. O rio lambia voraz o fundo das pontes, todas elas, nenhuma escaparia de ser engolida... O carro me deixou perto de casa e fui o resto a pé, num escuro que não dava pra ver um palmo depois do nariz. É uma sensação muito interessante caminhar no escuro, com o caminho decorado na cabeça. Escutava as inúmeras águas que rolavam de todo lado embolando pelas encostas, gretas, saltando fora dos caminhos habituados. Tateava em alguns lugares onde sabia perigo. O pontilhão com a manilha furada, o trecho com as pedras soltas. Pensava na alegria do casal que iria agora receber o pequeno.
Há pouco (são 11h) fui avisado de que a criança nasceu às 7h e que foi tudo bem. Mais um para a rotina da vida, mais um para as surpresas que o mundo nos traz!
Em 14/1/10, recebam meu abraço, Aureo Augusto.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

AGORA SÃO OS MORCEGOS!

Agora são os morcegos. Quem acompanha meus escritos sabe que tenho uma longa (e nem sempre tranqüila) história de relacionamento com os animais do vale onde habito. Gatos malucos já freqüentaram minha casa, aranhas belíssimas, cobras elegantes (e assustadas). As aranquãs (nem sei direito como se escreve o nome destas lindas aves) assaltando minha horta, coelhos moleques compartilhando meus morangos, ratos do campo passeando em meu ombro enquanto telefono, garrinchas fazendo ninhos em meus livros, sabiás dominando minha varanda... A lista é grande. Agora são os morcegos.
Há cerca de duas semanas encontrei um morcego na escada de casa. Enternecido com o bichinho fiz-lhe carinhos na cabeça e no dorso e depois com cuidado levei-o para fora. Acredito que foi esse o meu erro. Ele sacou que aqui não há perigo e convidou a família, de modo que na cumeeira do ateliê eles se amontoam alegremente. Não é isso o que me incomoda. Gosto dos bichos, desde que não tenha de cria-los. Esse negócio de dar banho, vacina, levar pra passear não faz minha cabeça. Por meu gosto os companheiros que partilham comigo o mundo podem entrar e sair sem nenhum tipo de problema. O problema dos morcegos é que eles cagam. E não é pouco. A parede fica marcada, a esteira (e aí vem as formigas, umas grandonas e nervosas – também não era pra menos, comendo bosta!). Os morcegos acabam sujando as minhas coisas. No mais são bem legais. Mas como não escutaram meus apelos para se servirem do vaso sanitário (como, aliás, faziam no consultório antes de eu por os vidros nas janelas – só a pontaria que não era das melhores) ou jogarem o adubo (dizem que é dos melhores) lá fora nas plantas, estou sendo obrigado a solicitar que se retirem.
Aí toda hora vou lá, e futuco o lugar que escolheram. Agora, quando entro no ateliê, os danados já saem rapidinho e se escondem entre as telhas. Depois voltam, e eu futuco, e voltam. Minha intenção é que eles se cansem. Capricornianamente não me cansarei. Aliás, isso me diverte.
E agora? O que será que vem por diante?
Recebam um abraço morcegal em 11/1/10.
Aureo Augusto

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

ANO NOVO notícias

Foi no final do ano passado que a notícia triste bateu no grupo que trabalha no posto de saúde da família aqui do Vale do Capão. Tivemos um concurso público, o que é muito legal, pois parte dos funcionários, o agente administrativo, o enfermeiro e o médico, por não serem concursados, podiam sair a qualquer momento. O concurso resolveria tal situação. A ag. administrativa optou por ser ag. de endemias e por isso saiu da equipe, mas a dor maior foi o enfermeiro, Gleiton Ulhôa, uma pessoa que conseguiu conjugar em uma só pessoa, qualidades excelentes, não conseguiu passar. Claro que ninguém entendeu. Fosse ele um simpático incompetente, ninguém estranharia; mas não é esse o caso. Ademais de ser uma pessoa muito agradável, cordata, interessada pelos, assim chamados pacientes, o cara é comprometido e faz o trabalho com cuidadosa competência. Ademais é assíduo defensor da eficiência do sistema, entende das burocracias burocraticamente impingidas sobre nós. A forma como me refiro à burocracia é apenas por que sou burro nesse negócio. Reconheço-lhe o valor e a necessidade, porém agradecia sempre a presença de Gleiton pairando sobre esta área.
Quando cheguei para trabalhar aqui, a primeira coisa que me disse foi que esta Unidade de Saúde da Família (USF) não estava cumprindo seu papel, uma vez que não realizava uma ação preventiva e educativa. Gostei. Começamos. Dois anos depois, faltam dedos nas mãos e nos pés para numerar a quantidade de coisas que fizemos. O que mais me dá saudade é o programa na rádio local, o Vale Saúde, que causou grande alvoroço na população (e está suspenso enquanto a rádio se regulariza). Gleiton com a voz de barítono e eu com voz de taquara rachada, era massa!
A equipe está de luto e o povo que vem à consulta não se cansa de repetir sua tristeza pela saída do profissional que se tornou amigo. Marilza fica pelos cantos com os olhos marejando. As Agentes Comunitárias de Saúde, tristes. Entendemos as necessidades do tempo. Compreendemos a importância, pertinência e acerto do concurso, mas que dói, dói ver a equipe rasgada de uma hora para outra. Muito benefício terá a cidade que captar Gleiton. Já a cidade de Palmeiras perde. Muito.
O ano passado nos trouxe grandes realizações e o II Encontro de Profissionais de ESF do Vale do Capão, foi um dos pontos altos. O ato de trabalhar é por si muito agradável, quando, porém, ademais do habituado adejamos vôo por outras ações necessárias, dá uma alegria tremenda. A par das grandes realizações sofremos este baque da ruptura do nosso tecido grupal. Não está sendo fácil administrar isso.
Em 7/1/10, recebam um abraço, Aureo Augusto.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

NOITE FORMIGA SOL GRATO

Esta escrevi ontem, mas não deu pra postar pq a internet estava estranha, pois a eletricidade estava estranha. Dada as estranhezas, só agora conto procês:
Hoje fui tarde pro rio. Eram 7h quando saí de casa e sorvi pelas narinas o cheiro da terra úmida. Acordei depois do tempo habituado e não ouvi a passarinhada acordando a manhã. É que nestes períodos de feriados é difícil de eu dormir uma noite inteirinha de comprido. Saio babatando no escuro procurando em vão ser silencioso o suficiente para não acordar Cybele, já acordada pelo grito áspero do telefone que toca muitas vezes, arrancando-me da mornidade da noite entre lençóis. Insetos picam gente sensível, barrigas doem, tornozelos, joelhos e gargantas. A noite passa interrompida como um caminho de formigas. Uma aqui outra mais, todas juntinhas, mas a trilha cheia de intervalos (comparei porque no caminho agora dei com uma correição). Nos feriados longos o Vale se enche de turistas e estes caminham com os modos de nuvens, roçando as montanhas. Por algum motivo dão de olhar as serras e as belezas demais sem parar de andar. Tropeçam. Também gostam de aventuras e sobem rochas e cachoeiras até descambar e caem muitas vezes como frutas maduras. Desatenciosos até onde não podem mais, na atenção das estrelas, como aquele filósofo que caiu no poço, acabam caindo, não no poço, em cima de pedras ou debaixo das águas. Quem guenta? Também querem experienciar esta coisa sã, absoluta, chã, irredutiva (esclareça-se) que é a Natureza. Vêm lambuzados de açúcar, chocolates, leites, refrigerantes, pastas arrancadas de latas esmaltadas e garrafas cristalinas. Expõem suas peles fragilizadas (em grande medida, não se esqueça, pelos não legumes no prato) à sanha zumbidora. Cada picada enfeita a cútis de grandes ronchas vermelhas foguinas, coçantes. Mas o mais de tudo é o avoamento radical. Bonito, encantador, mas tropeçador. Interessante é que o povo local acaba por contaminar-se um tanto desta condição de modo que acidentes ocorrem com eles mais por agora quando a vizinhança é farta de gente de fora; ademais é demais a festividade de guloseimas nos períodos festivos – nada se nega aos pequenos destas bolinhas coloridas artificiais e artificiosas. Por isso noites rompidas por sons estridentes e dores.
Gostoso foi chegar no poço da Cruzinha, aonde sempre vou, quando as noites não são mais espaços que formigas (de 31 para 1o, foi, fiquei mais acordado que dormindo, e não foi fazendo festa). Cheguei e me acocorei numa pedra sentindo no olhar a placidez do remanso. Foi aí que o vento começou a alisar minha cara e justo quando o sol apontou por sobre o Morro Branco e quentou tão suave como a mão de Cybele no meu rosto. Fiquei ali sentindo em silêncio por uns pares de minutos, antes de as nuvens requisitarem sua graça de luz. Caí na água e o cansaço virou lembrança.
Recebam um abraço novinho como o ano que começa.
Aureo Augusto